É através do óleo sobre tela que Geoneide Brandão (AL - 1999) encontra a dimensão necessária para falar sobre o seu desejo, este que, em meio ao rubor das suas vivências, acaba confluindo também com aqueles compartilhados pelos seus pares. Nesta entrevista à Propágulo, rememora a sua trajetória artística, o erotismo por trás das suas obras e quais as principais referências que espelham no seu repertório imagético.
Paisagem, 2023, óleo sobre tela, exposto na Trienal internacional de Tijuana
Não há análise, cartografia ou finalismo que defina a arte queer. A metodologia para uma investigação conceitual do movimento, que se vê contrária a percursos certeiros, os quais podem até dar sentido às perspectivas normativas, é cingida sobremodo pela codificação cultural das subjetividades. Ao discutir outras possibilidades de existências não identitárias, a pesquisa visual de Geoneide Brandão desordena “os códigos de inteligibilidade e apavora os viciados em identidades e desejosos de normas”¹.
Situado no bairro da Boa Vista, em uma vila de casas que resistiram ao tempo e ao processo de verticalização cada vez mais ambicioso no Recife, o seu ateliê é tomado por imagens que, em um não enquadramento dentro de um gênero binário, cortejam com as excentricidades provocadas pelo encontro do diferente à norma e inusitado. Vindo de Ouro Branco, município do Sertão de Alagoas, o artista de 25 anos já migrou para Maceió, Natal e Rio de Janeiro até firmar o que considera um lar na capital pernambucana. Entre tantos deslocamentos, Geoneide começou a dar contornos à sua trajetória artística.
“Não sou uma pessoa introspectiva, mas sou muito tímido. Encontrei nas artes visuais uma maneira de me expressar. Ainda no Sertão de Alagoas, durante a minha adolescência, me interessei pela fotografia. Foi ao chegar em Maceió que transitei para a pintura, sempre intercalando com o desenho e a colagem. Mesmo tendo contato com outras linguagens, me considero um pintor, é meu lugar de segurança”, comenta.
Desenvolvendo a sua paleta de cores há quatro anos, com uma seleção cromática marcada principalmente pelo esbraseado erótico do rosa e do vermelho, o artista realiza pinturas a partir de fotografias tiradas pelo celular. Tais cores preenchem tanto cenas com imagens detalhadas, onde o referente é delineado com clareza, quanto telas mais voltadas à sua atual pesquisa, onde os trabalhos parecem ser construídos abstratamente, mas são recortes ampliados de obras que já existem.
É na conjugação do procedimento de pintura ao toque outrora vivido ou imaginado que o trabalho do artista se emaranha com o campo do desejo. Ao “juntar duas volúpias num ato sublime, onde o domínio de si mesmo e sua técnica, se fundem²”, tal qual o prazer de pintar o que se deseja se funde ao prazer de pintar, o seu escopo artístico se contrapõe a discursos insustentáveis na contemporaneidade, como os apresentados e rechaçados pelo pintor Heitor Dutra em A Grande Aventura: desdobramentos de uma imersão em pintura, sua dissertação de mestrado.
O historiador da arte Daniel Arasse (2019) aborda essa relação, que Valéry (2003) trata como a união de duas volúpias de maneira bastante contundente e também problemática. Ao associar a força matricial do pintor ao fato deste possuir um pênis, o historiador exclui imensa parcela das pessoas que pintam, caindo numa redução perigosa (...). Seria também interessante se esta história construísse, ao seu cabo, a expectativa em relação aos próximos passos desta união de volúpias; quais corpos e como operarão, para além da relação pênis-pincel ou homem-mulher, os próximos pintores, pintoras e pintorxs? (DUTRA, 2020, p. 46-47).
As provocações sensoriais na obra de Geoneide Brandão atuam diversamente — duas bucetas juntas, uma lambida em um mamilo, ou uma mastectomia, já são suficientes para causar desconforto à ordem normativa. No entanto, os aspectos surpreendentes em cada tela remetem a uma epistemologia de que a “queeridade nunca pode definir uma identidade, só pode perturbá-la³”. Para o artista, como ele próprio afirma, o tensionamento proposto pelas formas e movimentos em suas pinturas são como quem diz “Eu existo, as minhas relações existem e tem beleza e angústia nessa subjetividade”.
Livre, 2021, óleo sobre tela
À época que apresentou sua produção em Gestos de amor, práticas de sedução, exposição que integrou a segunda edição do Contra-Flecha, programa artístico da galeria Almeida & Dale, as reflexões do filósofo Renato Noguera foram base para as discussões dos artistas participantes. “Dialogamos sobre a diferença entre o erótico e o pornográfico, e uma das coisas que ele mencionou foi sobre como o pornográfico está envolto dessa objetificação do sujeito. Minhas representações partem de um lugar de subjetividade e confluência. Sou uma pessoa dissidente e quem me cerca também, então minha produção é consequência dessa realidade. Vejo minha pintura como um espaço de desejo e poder, um Cavalo de Tróia que propõe questões contrárias aos conceitos conservadores de gênero”, disserta.
Para o desenvolvimento das suas obras, o artista alagoano mobiliza algumas referências que considera importantes. Na música que escuta, a subversão que atravessa décadas da cantora e ícone pop Madonna. Já na fotografia, cita os trabalhos do chinês Ren Hang e da estadunidense Nan Goldin. Na pintura, a figuração sintetizada de Georgia O'Keeffe chamou atenção desde os momentos iniciais da sua trajetória artística. “Já no meu ciclo social, posso citar Fefa Lins, pela forma como ele fala sobre as questões de corpo e sexualidade. Fiz parte também de um ateliê coletivo, o Escadaria, e foi bem importante para mim ter contato com os processos das outras pessoas que participavam dele, como Rayana Rayo, amorí, Eduardo Nóbrega, Ossy, Lu Ferreira e Xinga”.
O repertório das cenas íntimas no trabalho de Geoneide Brandão estende um vigor estimuloso àqueles “que não temem sua revelação nem sucumbem à crença de que as sensações são o bastante⁴”. É nessa circunstância que as produções imagéticas sedutoras nos inspiram e tomam forma. Em possibilidades onde não há esvaziamento ou monotonia, existe uma intensidade tão cativante que não encontramos outra maneira de saboreá-la que não pela exigência de pôr em prática o êxtase que nos pertence.
¹ Revista Electrónica de Psicología Política, v. 11, n. 22, p. 261-277, 2011.
² VALÉRY, Paul. Degas Dança Desenho. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
³ EDELMAN, Lee. No al futuro. La teoría queer y la pulsión de muerte. Madrid: Egales, 2014.
⁴ LORDE, Audre. Os usos do erótico: o erótico como poder. Original. Use of the Erotic: The Erotic as Power, in: LORDE, Audre. Sister outsider: essays and speeches. New York: The Crossing Press Feminist Series, 1984. P. 53-59. Tradução feita por Tatiana Nascimento dos Santos – Dezembro de 2009