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Propágulo

ENTREVISTA COM MATHEUSA DOS SANTOS

Na revista Propágulo 8.2, a artista conversa com o educativo da Galeria Janete Costa sobre sua performance 'Lanchão' e o racismo recreativo no meio digital


Foto: Marlon Diego

Cerca de duas semanas após a abertura da exposição "A Beleza da Lagoa É Sempre Alguém", o educativo da Galeria Janete Costa tomou a iniciativa de entrevistar algumas das artistas presentes na mostra. A escolha por matheusa dos santos e Nara Gual aconteceu a partir do diagnóstico de que havia um maior desafio na mediação realizada entre o trabalho das respectivas artistas e o público visitante. Coincidentemente, Marcela Dias deslocara-se até o equipamento cultural para intervir em sua arquitetura a partir de seu trabalho no mesmo dia em que o educativo se encontrava reunido com matheusa.


A instituição tivera, em um passado recente, o cargo de coordenação de educativo. Contudo, naquele momento, a função era assumida por Carlito Person, gestor do espaço até julho de 2022. Os demais educadores da Galeria Janete Costa são estagiários, sendo eles estudantes do curso de Licenciatura em Artes Visuais da Universidade Federal de Pernambuco (Alexandre Vitor, Igor Souza, Francival Pereira (Franci), Rômulo Jackson e Ruana Mendes) e do Curso Técnico em Artes Visuais do Instituto Federal de Pernambuco (Maya Amapô).


O trio de conversas, por serem gravadas, tornou-se um rico material para este ciclo de pesquisa, visto que não somente mapeia a mostra em processo, como também traz à tona os repertórios das artistas e, principalmente, dos educadores transpostos em seus comentários, questionamentos e interpretações.

 

matheusa dos santos - Eu comecei a fazer "Lanchão" observando o meme como gênero textual dentro da poesia. Sendo alguém que escreve online, me incomoda como, para algumas pessoas conseguirem uma plataforma na internet, isso geralmente acontece de uma forma "terceirizada". Tipo: eu gravo um vídeo que não é pra ser humorístico e aí alguma pessoa - usualmente dentro da cisgeneridade e de um padrão de branquitude - faz uma página no Twitter ou no Instagram a partir do conteúdo. Foi assim que um cara criou um perfil no Twitter chamado "Acervo Ygona Moura' e começou a colocar vídeos dela que não eram de fato humorísticos. Foi encontrada uma graça por causa da forma que o corpo dela tinha. Ela era uma pessoa gorda, tinha problemas respiratórios, estava em situação de vulnerabilidade e isso começou a se tornar a parte cômica do conteúdo que ela produzia. Eu ficava observando isso com amigos que também trabalham com meme, e a gente ficava pensando "Qual é o fim que isso toma?". Tal hora ela morreu, e eu, que ainda não escrevia em público, escrevi um texto sobre essa morte de Ygona. Fiz como uma forma de processar pra mim mesma questões sobre esse problema da imagem, do artista que vira um produto a partir do seu corpo. Com o texto pronto, uma amiga minha, que na época era do Saquinho de Lixo? falou "Uai, posta na internet!". Ela compartilhou e esse texto chegou em muitas pessoas. Eu nunca tinha passado por essa experiência de ter um texto lido por muita gente.


Foram muitas pessoas com a demarcação de homem gay branco que leram esse texto. Fiquei bem mal com isso. Na real, senti que o que estava acontecendo comigo era próximo do que aconteceu com a Ygona. Não queria virar um produto, sempre fui uma pessoa bastante tímida, na minha. Fiquei com esse incômodo e comecei a pensar em alguma forma de solucionar isso no íntimo.


Foto: Marlon Diego

Por isso, pensei em despachar alguma coisa na encruzilhada para Ygona. E, como no texto eu falava sobre hambúrguer, pensei em despachar aquelas McBoxes do McDonald's, sabe? Ela primeiro se chamava "Ebó para Ygona", só que, conversando com um amigo, toda hora eu falava que queria fazer um lanchão, queria despachar um lanchão, e ele sugeriu que o trabalho se chamasse simplesmente "Lanchão, ao invés de ter essa marcação explícita do ebó, do ritual.


Fiz na encruzilhada da minha casa, depois, já na forma da uma estrela, naquele McDonald's da Avenida Agamenon [Magalhães], o primeiro de Recife - na época eu estava pensando nesse trabalho também como uma forma de ativação urbana, porque geralmente os McDonald's são implantados em desertos alimentares. Depois, fiz o trabalho na casa de um amigo em Fortaleza e, nessa casa, a gente inseriu as velas. Então, não montei mais até chegar aqui na galeria. Nessa de agora fiquei preocupada sobre como fazer isso com pessoas que não conheço.


Novamente recorri ao íntimo: fui criada dentro de Santo Daime, um ritual musicado. Essas músicas são coisas que convivo desde a adolescência, e tem esse hino específico dessa chamada de São Miguel e Ogum das Matas, que tem esse jogo de palavras que está na parede.


Acho que a última coisa que decidi fazer foi acrescentar o ketchup, que é uma interação com o texto do André Lepecki sobre coreografias e coreopolíticas para debater sobre o comportamento e o movimento dentro de museus, espaços de arte e escolas, porque existem acordos de convivência que são coreografias, né? A gente não pode falar alto, não pode correr, não pode comer, não pode sujar, porque são prédios de uso institucional. Pensei no que significa, para um corpo como o meu, ter autorização de sujar, de entrar nesses espaços livremente e quebrar essa institucionalidade, nem que seja por alguns segundos.


Fotos: Marlon Diego


Alexandre Vitor - Achei fantástico quando você levantou logo no início essa questão de que geralmente são pessoas periféricas e pretas que são colocadas como um meme, vejo muito isso acontecendo também nas figurinhas de WhatsApp.


MS - Sim, o termo para isso é racismo recreativo. É uma forma de agressão através do humor, né? Através da diversão. Te ouvindo agora, acho que isso também é uma motivação para esse trabalho. O problema não é a pessoa virar um meme, sabe? Não é que eu ache que o meme tem que parar de existir, ou que eu ache que o racismo recreativo vai parar de existir. A Ygona, antes de morrer, estava tentando fazer essa transição de meme para influencer, mas, na real, ela não tava conseguindo. Tem um vídeo ontológico dela em que ela recebe uma cesta de feira. A única vez na qual ela conseguiu trocar a roupagem foi essa, quando ela recebeu uma cesta de hortifrúti, com ovos, tomate, legumes e máscaras de covid. Todo mundo vai ser zoado. A Gretchen já foi zoada na Internet, mas ela, por exemplo, consegue. Tipo, viver um segundo auge depois de virar um meme. Tem aquela outra influencer, a Bota Pó, que é uma menina trans, menina novinha, mas ela é uma menina magérrima e tem uma passabilidade bafo. E ela tem conseguido através do meme se tornar uma influenciadora. Lógico, é um trabalho sério, com o qual ela paga tratamento de saúde da família, várias coisas. Não estou dizendo que ela não está no corre, mas é clara a diferença da facilidade de navegação que um corpo pode ter e outro não. E aí não é uma dificuldade uniforme. Não é como se a Bota Pó não tivesse sob um estado de marginalização, mas existem códigos, né?


Estava conversando com uma amiga esses tempos, que é artista também, a Walla, uma travesti lá de Minas que agora tá no Rio, e a gente tava falando justamente sobre isso, sobre como às vezes você ser alguém que sabe falar, mesmo você não sendo uma pessoa cisgênera, mesmo você não sendo uma pessoa branca, se você tem lábia, você tem mais chance hackear e chegar, né?


Agora, se você não tem essa coisa da linguística desenvolvida, é bem mais difícil. E eu acho que a Ygona não tinha isso. Ela morreu de tuberculose, então a própria fala dela era marcada por catarro, por essa dificuldade de respirar. Mesmo no silêncio, em um vídeo dela, você ouve a sua respiração pesada. Pelo menos pra mim, que sou sensível e chorona, não é tão prazeroso de ver, é uma coisa que me deixa meio mal. Um corpo que estava agonizando na frente de todo mundo, sendo seguido por cem mil pessoas.


Foto: Marlon Diego

São essas coisas que me levaram a fazer esse trabalho, não sei se vou fazer novamente, mas eu trato ele muito mais como uma linha de pesquisa do que como uma obra. É uma escultura efêmera, a coisa do outro, do hambúrguer e tal, uma escultura que surge ali, depois some, consumida, e isso me permite montar ela sempre.


Mas agora quero dar um descanso. Fiquei bem mal depois dessa montagem, na hora em que estavam várias pessoas ao meu redor, meio que meu olhinho encheu de lágrima. Cara, me senti meio cercada.


 


A entrevista completa já está disponível na revista Propágulo 8.2!



Garanta a sua e fique por dentro dessa conversa que trouxe à tona o repertório de matheusa dos santos e demais artistas mapeados na nova edição da revista.










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