top of page

PISTAS DE EPIFANIAS

Por meio de um sincretismo que percorre desde a sua expressão como grafiteiro, seguindo até a presença da sua ancestralidade, que também se reverte em pintura, a linguagem artística de Bozó Bacamarte apresenta narrativas populares do Nordeste, através de representações gráficas inspiradas nas técnicas de xilogravura. A produção visual do pernambucano é discutida em "Pistas de Epifanias", texto publicado na exposição Seis Paisagens na Galeria Marco Zero, com curadoria de Guilherme Moraes, e agora disponível no editorial da Propágulo. 


A chave do caminho e os sete pontos firmados, 2023 Acrílica sobre tela 120 x 100 cm


I


“Oh lelê dona Chica…” entoava em alto e bom som o palhaço de perna-de-pau. “Mexe a canjica!”, respondia o grupo de crianças que o seguiam, saltitantes, pela rua. Uma delas era Bozó Bacamarte (Recife - PE, 1988). “Hoje tem espetáculo?”, perguntava o homem cambaleante, anunciando a chegada do circo que se armava no terreno próximo ao cemitério. “Tem, sim, senhor!” Gritavam todos, eufóricos, naquele ano de 1994. 



Carnaval, Acrílica sobre Eucatex, 2023


II


Certa vez, Bozó acompanhou seu pai a uma visita a Tia Cecília, parenta da família. Recorda-se do fascínio que sentiu ao observar, em sua mesa, representações de entidades distintas das que costumava encontrar em um universo católico, ao qual era, até então, mais familiarizado. Enquanto fitava figuras mais irreverentes e coloridas do que as que já conhecia, escutava, ao longe, o som de alguma cantiga na voz de Cecília ritmada por um maracá. Essas imagens e sons ficariam gravados em sua memória, assim como o cheiro de fumo queimado há pouco no cachimbo de sua tia “espírita”. 




Galo de Demanda, 2022, Acrílica sobre tela, 70 x 50 cm


III


Ainda é possível ver alguns dos primeiros grafites e pixos monocromáticos produzidos por Bozó nos muros que recortam Recife e Olinda. Características por aludirem ao entalhe farpado da madeira, próprios da xilogravura, tais propostas já delineavam uma série de interesses que viriam a ser burilados ao longo da produção do artista. Anos depois, a tela se somaria a uma prática de produção imagética que sempre fora, afirma Bacamarte, pintura. Nesse novo meio, ao invés de seus personagens medirem duas, cinco, dez vezes seu tamanho, como nos murais que ainda produz, passariam a figurar a partir do artifício da redução — por meio do qual o artista se tornou capaz de interligar conjuntos cada vez maiores de cenas em simultaneidade.




Detalhe de Galo de Demanda, 2022, Acrílica sobre tela, 70 x 50 cm


IV


Foi em 2005, em uma aula de campo no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (MAMAM), que Bozó se deparou com as gravuras do pernambucano Gilvan Samico. Estas, passariam a ser referência direta para o seu trabalho. À sua maneira, Bacamarte atualiza a plasticidade e alguns dos preceitos do Movimento Armorial em suas telas, mas seria redutor localizar o movimento como única lente para a leitura de sua obra, sendo este o pontapé de uma grande epifania que viria a se tornar a força motriz de sua identidade artística. 


Os três Guardiões e o Cavalo Mestre, Mista sobre tela, 110x90


V


Há alguns anos, na estrada rumo a Taquaritinga do Norte, outra centelha: um céu sem nuvens, todo em um azul inexplicável, simultaneamente pálido e vibrante, abria-se aos olhos de Bozó prenunciando o entardecer. Esse elemento passaria a ser uma das primeiras cores a coincidir com o preto e branco de suas imagens, autorizando um sem-fim de outras, cada qual relacionada a uma lembrança ou sensação que habita a paisagem afetiva de sua memória.


VI


As pinturas de Bozó Bacamarte exemplificam um universo encantado, humorado e delirante proposto por ele. Suas paisagens agrestes, chaves para outro mundo, são povoadas por figuras equilibristas, contorcionistas, saltitantes. Híbridos de animais, brinquedos, gente e entidades, todos os seres parecem suspensos no ápice de seus gestos dentro das paisagens insólitas propostas pelo artista. 



A casa da mestra e os bodinhos Pirilim, Mista sobre tela, 2023


VII


Na sua etimologia, híbrido vem do grego hybris, significando delírio, sonho, embriaguez, alegria, excesso, equívoco. Bozó Bacamarte propõe uma iconografia prenhe de um imaginário sincrético — demarcado por signos da Jurema Sagrada —, mas também emendado com a aleatoriedade, o trocadilho e as superstições populares. É uma alegria delirante dentro de uma rigidez que ainda acena para xilogravura, que tanto lhe é afeita. É um excesso sonhado com rigor. É o oposto de um equívoco: as imagens inventadas por Bozó são o ponto de encontro de seus sentidos outrora dilatados em epifania.


*Texto publicado na exposição Seis Paisagens, com curadoria de Guilherme Moraes, em cartaz em julho de 2023 na Galeria Marco Zero, no Recife.

bottom of page