Distante do festejo noturno das sextas-feiras recifenses, no qual a luz amarelada dos postes dão brilho à toada harmoniosa do pandeiro em sintonia com o cavaco no Pagode do Didi, a R. Ulhôa Cintra, no bairro de Santo Antônio, me parecia desconforme naquela tarde de segunda-feira. Não apenas pelo motivo da minha ida, que não combinava com o usual pândego da conhecida roda de samba na localidade, mas por me ver agora à trabalho, na condição de quem está prestes a iniciar uma entrevista. Nesse caso, a conversa traçaria um percurso dilatado, longe de focar em uma única pessoa, mas investigando as condutas e perspectivas de um coletivo de arte — o Escadaria Atelier Coletivo.
É no Edifício Douro, um prédio multicolorido de dois andares, que o Escadaria toma forma e ocupa seu espaço na cidade. Fundado em outubro de 2021, é composto atualmente por 14 artistas residentes¹ que atuam majoritariamente no Recife. Estanciavam vespertinos em suas respectivas áreas de trabalho no dia da entrevista Chacha Barja, Marlan Cotrim e Xinga, cada um seguindo sua própria rotina de produção.
Rotina intensa e acúmulo de tarefas se tornam a realidade de artistas que, mesmo com o avanço de políticas de democratização e afirmação, e a também inegável força do setor cultural em dialogar e se impôr, ainda se encontram em uma corrida dinâmica em busca de editais e patrocínios, como se tivessem que performar como empresários da suas próprias carreiras. Em uma realidade na qual os problemas e soluções aparentam ser cada vez mais individualistas, é através da contingência daqueles que compõem uma coletividade artística que se pauta meu interesse em observar o desenvolvimento do Escadaria, um espaço que vai se revelando, à medida que desenvolvo esta série de reportagens dividida em três partes, capaz de percorrer caminhos possíveis para um fazer artístico, menos penoso e solitário.
Os recortes terrestres suspensos de Marlan
Nas várias linguagens visuais realizadas neste espaço-criação coletivo, entre pintura, escultura e gravura, um projeto me chamou atenção. Do lado esquerdo do ateliê, em entremeios têxteis de linhas pretas de algodão bordadas num tule, um corpo pendendo para o lado com fios escorrendo abaixo dessa costura, semelhante ao curso de um rio caudaloso, recebia ainda algumas alterações pelas mãos atentas de Marlan Cotrim.
De Goiás, deslocando-se para São Miguel dos Milagres, em Alagoas, onde morou por dois anos, a artista chegou ao Escadaria Ateliê ainda no começo de 2023. Suas obras em costura, que se caracterizam como mapas topográficos, refletindo o corpo como fronteira e a pele como litoral, foram influenciadas também pela pesquisa visual que se tornou o período de residência na cidade alagoana.
“A natureza impera por lá. Eu morava a poucos metros da praia e é aquela coisa de ver cobra e cavalo no meio do caminho, de não precisar usar muita roupa — só a parte de baixo e chinelo”, recorda. “Foi aí que dei atenção a essa técnica para a repetição da linha, e comecei a estudar o movimento da luz e como ela vai bater de um lado para eu conseguir dar esse efeito de onda”.
Em processo de desenvolvimento para ser exibida à época na exposição Seis Paisagens², “Forró de um lado só” é mais uma das diversas investigações têxteis que trazem à tona a sua linha de pesquisa: a relação do corpo, pele e território, todos interconectados por esses contornos terrenos capazes de suspensão.
Vinda dos estudos com a dança desde os seus oito anos de idade, onde a coreografia da intenção converge por fim na encantaria do movimento, Marlan transborda em si o fascínio pelo corpo. Enquanto conversamos, percebo esse interesse se materializando na maneira como ela se vestia naquela tarde, seja o brinco prateado no formato de uma face pendurado em sua orelha, o anel decorado com um olho aberto ornando seu dedo médio, e até uma uma tatuagem vermelha de uma cobra na sua mão esquerda, que me remeteu à maleabilidade do corpo daquele réptil ali representado.
Fios e mais fios de cabelo costurados em um tule no canto direito de um suporte metálico na sua área de trabalho também fazem parte desse imaginário criado sobre o corpo. Iniciada no final do ano de 2022, a pesquisa com cabelo se provou tocante para Marlan, apesar de ser um material difícil de se manusear com a agulha. “Esse trabalho tem muito de eu sempre querer ter cabelo grande desde criança. Eu sou filho de pastor, então é aquela coisa de sempre ouvir ʽcorta esse cabelo’, que marca muito minha infância”, enfatiza. “Cabelo traz à memória essa resistência do tempo, ele perdurando em mim anos em desobediência”.
Dou ainda algumas voltas pelo ateliê do Escadaria, meio sem jeito de subitamente me aproximar de mais alguém para uma conversa que possa tomar tempo de trabalho, mas, antes de me acomodar na rota do acanhamento, sou movida pela chegada enérgica de mais um artista. Alto, usando um notório mullet como corte de cabelo e levemente esbaforido da subida dos lances de escada com sua bike ao lado, surgia Eduardo Nóbrega, que logo se juntou à mesa onde estava Xinga. Os dois juntos, conversando em uma harmoniosa fofocagem de amigos, me fizeram pensar que ali seria um bom caminho, ou ao menos um mais fluido, para desenvolver a pauta sobre esse espaço de arte desenvolvido em coletivo.
De frente para os dois, começamos a traçar uma conversa sobre o início do Escadaria Ateliê, o funcionamento interno e os perrengues de uma iniciativa desenvolvida em conjunto, além de opiniões sobre a cena artística pernambucana e o porquê de se criar entre pares.
¹ O Escadaria é formado por Amorí, Aoruaura, Chacha Barja, Cigana, Danielly Guerra, Eduardo Nóbrega, Fefa Lins, Geoneide Brandão, Joana Liberal, Lu Ferreira, Luiza Morgado, Marlan Cotrim, Mirela Rodrigues, Ossy Nascimento, Rayana Rayo e Xinga.
² Exposição em cartaz na Galeria Marco Zero, “Seis Paisagens” é um experimento curatorial que reúne diferentes exposições individuais desenvolvidas por Guilherme Moraes a partir do trabalho dos artistas Bozó Bacamarte, Bruno Faria, David Alfonso, Ianah, Rayana Rayo e a entrevistada dessa primeira parte da série de reportagens, Marlan Cotrim.