“Caminhar pra trás, enganar o invasor”: biarritzzz e abr0s me gritaram em 2022 através de um curupira que caminhava pra trás, acompanhado dessa frase pixada num tapume pelas ruas. Se quem me ler for uma pessoa racializada que habita os diversos não-lugares das cidades, talvez possa reconhecer a emergência que mora nesse grito. Eu reconheci que não estava sozinha.
É que desde 2020, em meio às incertezas do começo da pandemia, eu já andava caminhando pra trás junto a minha mãe e duas mais velhas da família, seguindo as pistas que a oralidade foi trazendo. O medo de perder essa nossa memória viva para o enorme descaso com a vida que imperava naquele período, fez a gente usar o que tinha para documentar o que guardávamos só na oralidade: desenho, pintura e as ferramentas contidas nos dispositivos móveis. Alguns desses achados, comecei a sistematizar através da arte, enquanto artista-pesquisadora no Núcleo de Práticas Artísticas Autobiogeográficas da UFG, depois esses e outros achados se tornaram meu projeto de mestrado em Antropologia Social, pela UFPB.
Vim aqui contar um pouco do que fui encontrando nesse caminho:
PASSOS QUE VEM DE LONGE
Comecei me perguntando se eu poderia dizer que viajar ou talvez imigrar é uma tradição ancestral na minha família... É que pelo menos desde a geração dos pais da minha bisavó (que é até onde nossa memória familiar alcança) que temos o costume de ir morar em outro lugar que não o de nosso nascimento. Nessa pesquisa, além dos achados preciosos da oralidade, eu e minha mãe descobrimos alguns documentos sugerindo que talvez essa itinerância nossa seja muito mais ancestral do que a gente imaginava.
Vou contextualizar vocês. Eu nasci em Recife, já mainha nasceu em Natal e hoje em dia mora no Sul da Bahia. Sua mãe foi uma das poucas da família a arriscar sair de Limoeiro do Norte - CE pra morar numa capital (Recife), mas é a história da família do pai da minha mãe que realmente me impressionou: meu avô materno nasceu no Rio de Janeiro, mas só por que sua mãe, minha bisavó, nascida e criada numa casa de taipa no bairro do Alecrim em Natal, não queria que o filho fosse registrado como nordestino (o mesmo aconteceu com minha tia-avó, anos depois). Mas o mesmo navio que a levou pra ter os filhos no Rio, depois trouxe todos de volta pra morar em Natal. O navio em questão era onde trabalhava meu bisavô, um capoeirista cuja família é de Valença-BA e que fazia parte da tripulação da
marinha. O conheci quando nem me entendia por gente ainda, no finalzinho de sua vida. A
bisa cheguei a morar com ela quando criança (enquanto minha mãe viajava) e durante minha graduação em Artes Visuais até 2012, quando eu me formei e ela veio a falecer.
Não sabemos precisamente de que terra vieram os ancestrais da bisa Izabel, só temos a afirmação trazida pela memória de minha tia-avó Iza e por sua prima Adilse que minha bisa era descendente de indígenas e que sua mãe, Maria, era nascida em Igreja Nova (RN) e descendente de uma família que veio do Seridó. Vó Maria era rezadeira da comunidade onde foi morar (depois de casada) no bairro do Alecrim, na época que essa região era uma periferia cujo chão era de areia branca e as casas feitas de barro, aos arredores de Natal. Com a ajuda desses e outros relatos orais vindos de duas mais velhas da minha família, cruzando com relatos do povo que hoje habita a região de seu nascimento, recriei um retrato pra Vó Maria:
Vó Maria Tarairiú, geotinta, tecido e folhas de manjerioba sobre tela, por Ianah
Movida pela curiosidade de conhecer os lugares que já fizeram parte da história desse ramo da minha família, comecei uma série de itinerâncias por essa nossa memória. Como já era meu costume, fui coletando amostras das terras desses territórios para minha coleção de pigmentos naturais, que fabrico artesanalmente desde 2017 no meu ateliê pra fazer pinturas. Mas agora passei a me indagar: já que não temos uma terra de onde viemos, seria essa minha forma de “ter” todas as terras por onde as itinerâncias negras e indígenas da minha família já passaram? Andei atenta às cores das terras nos entre-lugares de Recife, Valença, Salvador, Natal, Macaíba, São Gonçalo do Amarante, Acari, Currais Novos, etc.
Fiz uma cartografia cromática a partir dessa vivência, numa obra chamada Travessia Demarcada (2023).
Travessia demarcada, geotinta sobre tela, galhos de jurema, fios de algodão e palha da costa, por Ianah
TEM GENTE MORANDO NESSE CAMINHO
Nessas andanças, fui conhecendo algumas pessoas que hoje residem em alguns desses territórios, e fiquei encantada ao saber que pertinho de um dos lugares da nossa memória, tem um povo lutando por sua terra e contra o apagamento da sua história e etnicidade¹: A Comunidade Indígena Tapuia Tarairiú Lagoa do Tapará. Essa comunidade fica num entre-lugar periurbano da Grande Natal, entre os municípios de Macaíba-RN e São Gonçalo do Amarante-RN, da qual Igreja Nova é atualmente distrito.
Fui apresentada a essa comunidade através do olhar de uma família de artesãos, que me acolheram e se reconheceram nas minhas intinerâncias familiares. Josué Kyalonã Campêlo, artesão e uma das lideranças da comunidade, e sua esposa Akriptzé, me falaram que suas famílias também são um tanto itinerantes: ele morou muito tempo em São Paulo e a família dela vem do Seridó. Kyalonã me indicou algumas leituras sobre uma possível tradição semi-nômade dos Tapuia, entre elas, o texto de Olavo Medeiros Filho² , que afirma que eles “mudavam frequentemente de acampamento, ao sabor das contingências alimentares” (FILHO, 1999, p. 249). Foi aí que todas essas nossas andanças fizeram um especial sentido pra mim: talvez faça mesmo muito tempo que a gente seja itinerante.
Fui chamada por eles pra ajudar na organização da Feira Cultural que acontece todo ano em Maio, e desde 2022 tenho me somado a essa mobilização da comunidade ajudando principalmente a fazer os materiais gráficose em 2023, a cacica Francisca me chamou pra criar a arte da camisa e do cartaz desse evento, o que fiz com muito prazer, usando como referência os grafismos que Kyalonã já usava pra ilustrar a constelação do Setestrelo (um dos símbolos da re-existência Tarairiu) em seus artesanatos.
À esquerda, Design da camisa da VII Feira Cultural Tapuia Tarairiú; à direita, Maracás feitos por Josué
Quando contei sobre esse encontro com o Tapará e as artes feitas pra Feira pra minha tia-avó, ela me contou que aprendeu com sua mãe (a bisa Izabel) a reconhecer a constelação do setestrelo no céu. Ela me contou que se orgulhava de ser a única na sua turma da escola a ter conhecimento da existência do Setestrelo, embora talvez já não mais soubesse da conexão ancestral que essa constelação tem com as festividades da colheita, celebrada pelos Tarairius em retomada hoje em dia. Quando mostrei a Josué Kyalonã o vídeo em que ela falava sobre essa constelação, ele me disse, em uma entrevista concedida também em vídeo:
[...] o fato de você ter na família alguém que cita o setestrelo, isso é muito importante, por que nem toda família tem esse privilégio na sua história oral, na oralidade. Então se chegou até você pela oralidade é uma prova, pra nós povos indígenas, é uma prova muito forte inclusive da linhagem da tua família. (informação verbal)³
Desde que entendi que existem grandes chances da minha ancestralidade indígena vir dessa mesma nação sertaneja, passei a usar também pontualmente o Setestrelo em algumas obras minhas, sempre que quero fazer referência a esse caminhar pra trás ou diretamente a essa ascendência. Como na obra A Visita do Setestrelo, que é o retrato de um sonho que tive enquanto estava passando um período lá na comunidade do Tapará.
A Vista do Setestrelo, geotinta sobre tela, por Ianah
Não pretendo com isso fazer nenhuma afirmação identitária, necessariamente, mas mais do que tudo, fazer o que foi sugerido por Sidarta Ribeiro em seu livro Sonho Manifesto (2022): saudar e honrar nossas melhores ancestralidades.
POR OUTRAS ROTAS
Nessa busca, além de mergulhar nas estradas entre Recife e Rio Grande do Norte, também fui buscando referências e inspirações com artistas de outros povos, que também andaram fazendo esse movimento de usar a arte para caminhar pra trás, em direção a um futuro ancestral. Como é o caso do artista Luis May, escultor e ceramista da etnia Maya, que tem seu ateliê em Cobá, México, uma das zonas arqueológicas mais extensas (e ainda não tão desvendadas) do seu povo.
Luis é escultor, trabalha com cerâmica, madeira e usa o barro pra retratar pessoas da sua cidade. E além das esculturas bastante realistas, Luis também tem estudado técnicas pré-hispânicas de arte, como uma forma de despertar uma cultura que anda um pouco adormecida, mas presente, entre os seus.
Esse ano, depois de ser selecionada para uma bolsa de mobilidade artística pela FUNARTE, fui aprender com Luis sobre arte e sobre a história de (re)existência⁴ do seu povo. Luis tem se destacado nessas suas pesquisas ancestrais principalmente pelo sucesso que ele teve ao recriar a antiga (e até então perdida) receita para o Azul Maya, pigmento milenar que já foi datado em alguns templos Maya (como o de Bonampak) como uma cor que está resistindo ao tempo desde muito antes da invasão espanhola. Esse pigmento é feito a base de terra e outros ingredientes naturais que estão muito bem guardados em segredo entre os parentes de Luis.⁵
Lá no seu ateliê aprendi a fazer cerâmica, reboco, pigmentos e aglutinantes naturais, seguindo a tradição pré-hispânica dos Maya. Aprendi também que existem outros artistas também fazendo essa re-existência ancestral entre os Maya que habitam o campo e as cidades, e que quase sempre a arte está no front em suas lutas.
Artes feitas por Ianah e Luis May durante a residência artística / Acervo pessoal de Ianah
Voltei do México em Maio deste ano com mais uma cor de terra na bagagem. Uma terra pintada de um azul que é natural assim como a cultura Maya que ainda molda e re-existe naquela região. Tenho minha primeira terra internacional na minha coleção, também o primeiro azul pra minha paleta. Tenho também bastante material pra transcrever nos áudios gravados em campo e muito trabalho pela frente nas minhas andanças para pesquisas artísticas e acadêmicas. E vi que de fato nem de longe estou sozinha nesse caminhar pra trás.
De fato não pertenço a nenhuma dessas terras por onde passo. Não o suficiente pra dizer que qualquer uma delas seja a “minha” terra (talvez Recife, onde fui uma das poucas da família a nascer e ser criada). Mas todas essas terras pertencem às cores da minha travessia, que pelo visto já vem acontecendo há muito mais que 500 anos e há de seguir acontecendo por pelo menos uma vida inteira.
Aprendi com a agroecologia que os saberes são sementes a serem dispersadas e multiplicadas. Se tudo der certo, essas sementes da memória hão de reflorestar todo o apagamento feito nas terras desse caminho.
Autocultivo III, pintura com terra, por Ianah
¹ CARVALHO, F. P. De; MARQUES, J.; FIALHO, V. Tapuias Tarairiús da Lagoa do Tapará: Origens, Cultura e Ambiente. Nova Cartografia Social do Nordeste, 2021. n. 1.
² FILHO, O. M. Os Tarairiús, Extintos Indígenas do Nordeste. Em: ALMEIDA, L. S. De; GALINDO, M.; SILVA, E. (Org.). Índios do Nordeste: Temas e Problemas. Maceió: EdUFAL, 1999.
³ CAMPÊLO, Josué Kyalonã Jerônimo. Entrevista Josué 2. [jun. 2022]. Entrevistadora: Ianah Maia de Mello. Macaíba, 2022. Entrevista Josué 2.mov (59 segs).
⁴ ALBÁN ACHINTE, A. Arte y estética en la encrucijada descolonial. 2a edición ed. Buenos Aires: Ediciones del Signo, 2009 (p. 94, rodapé).
⁵ MELLO, Ianah Maia. Diário de Campo: Residência Artística Ancestral. Cobá, México [s.I] , 2024.