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- MALEÁVEIS. NOTAS SOBRE OS SERES-ESCULTURAS DE CAIO MARCOLINI
Metal tecido, organismos transparentes, estruturas moles. A tentativa de descrever a produção escultórica de Caio Marcolini — por meio da junção de termos aparentemente disparatados — revela o caráter polivalente dos trabalhos. Uma estrutura, em princípio rígida, é tornada flexível por meio da técnica de sua produção: fios metálicos entrelaçados pelo artista (que constrói as próprias ferramentas) dão forma aos objetos que lembram tanto órgãos humanos quanto uma associação de organismos, uma biota por exemplo, que vive também em nossas entranhas. O trançado de fios faz com que seja possível enxergar o interior de tais “organismos”, deixando evidente o vazio, preenchido de ar, que lhes dá forma e estrutura. Elementos aparentemente contraditórios podem, nesse caso, transformar-se em um emaranhado de sentidos que não apenas recusam uma interpretação fácil, mas abrem possibilidades — semânticas e sensoriais — que dizem respeito às múltiplas relações entre corpos, não necessariamente humanos. Algumas das obras parecem habitar as paredes, como se estivessem retirando delas uma espécie de seiva. Outras existem sobre bases, tocando o chão, ou mesmo suspensas. Um formato frequente de gota parece estar crescendo, prestes a se deslocar de um todo que é, ao mesmo tempo, inconstante e provisório, mesmo sendo escultura. Há também casos em que aquela espécie de “ventosa”, que parecia se alimentar da parede, está suspensa no ar, desafiando a leitura simples que propõe uma relação direta entre a forma e sua função. Para quê uma função, ou uma utilidade, já que, segundo Ailton Krenak, a vida não é útil? Apesar de serem feitas em metal, como as tradicionais esculturas públicas dos heróis violentos celebrados pela arte ocidental (sobretudo no século 19), os trabalhos de Marcolini são, como já foi dito, maleáveis e transparentes. O que abre uma nova chave interpretativa: eles se dão a ver em sua totalidade, sem escamotear uma estrutura interna de apoio que, no caso dos “heróis”, poderia ter relação com os seres cujo trabalho (também no sentido empregado pela Física) sustenta sua carapaça rígida e grandiloquente. Além disso, as obras são leves, e guardam o potencial de serem facilmente transportadas, carregadas, rearranjadas e mesmo vestidas. BLTS 02, série bilaterais, trama em fio de latão Essa “inconstância” das obras, além de recusar a rigidez da escultura tradicional, faz lembrar o conhecido ensaio do antropólogo brasileiro Eduardo Viveiro de Castro, “O mármore e a murta”, que se inicia com uma citação de António Vieira, retirada de uma publicação de 1657. Diz o padre: Há umas nações naturalmente duras, tenazes e constantes, as quais dificultosamente recebem a fé e deixam os erros de seus antepassados; [...] mas, uma vez rendidas, uma vez que receberam a fé, ficam nelas firmes e constantes, como estátuas de mármore: não é necessário trabalhar mais com elas. Há outras nações, pelo contrário — e estas são as do Brasil — que recebem tudo a que lhes ensinam com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem resistir; mas são estátuas de murta que, em levantando a mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser mato como dantes eram. ¹ O desprezo do português pelo “mato” indomável e, enquanto metáfora, em relação aos indígenas brasileiros, evidencia não apenas sua ignorância em matéria de vidas e associações possíveis, como também pequenas — mas numerosas — histórias de anti-heróis, que recusam a durabilidade e a autoridade da fé, do mármore e do bronze fundido. Quem sabe com suas obras maleáveis, Marcolini não esteja também se recusando à autoridade do cânone, juntando-se à longa genealogia de artistas que propuseram outras materialidades, conceitos e formas, no campo da escultura? Obras na sequência: BLTS 03 e ORG70 Alguns trabalhos são feitos com mais de um tipo de fio metálico, o que reafirma a ideia de simbiose, ou a relação mutuamente benéfica de seres que criam algo que só existe a partir desse encontro. É o caso de obras da série Membranas, feitas com fios de ferro e latão, dois metais de colorações e propriedades diversas, que brincam com a enorme variedade de combinações possíveis entre eles, além de outras que poderiam surgir do contato das reentrâncias e protuberâncias das formas, em princípio autônomas. Na série Capturados, cobre e ferro também sugerem diferentes organismos, mas dessa vez a relação é tensa: um deles parece estar em vias de ser aniquilado e deglutido por um corpo maior, como o abraço de uma jiboia. A natureza, porém, não tem julgamentos morais; a morte de um ser frequentemente significa a vida de outro. De fato, em ambas as séries, e também em outros trabalhos, a matéria está lá, mas segue inconstante em seus usos e devires. “Os brasis”, lamentou Vieira, “ainda depois de crer, são incrédulos”. Poderia-se usar os sinônimos de “insolentes”, “insubordinados”: a maleabilidade da forma como recusa ao projeto civilizatório-colonial-moderno. ORG162, série Híbridos, trama em fio de latão De fato, algumas obras como as das séries SYS (Sistema), CLN (Colônia), MBN (Membrana) ou FSL (Fóssil) trazem, tanto nos títulos quanto na plaquinha de metal que as identifica, a marca dos sistemas de catalogação científicos, que buscam dar conta da extraordinária diversidade de espécies vivas que habitam o planeta. Tal sistema, no entanto, tende a desconsiderar a interação entre elas e todos os acontecimentos — provisórios ou não — que nascem desse contato íntimo, além da violência colonial que frequentemente acompanhou a prática de trabalho de biólogos, etnólogos, taxonomistas e outros profissionais, incluindo curadores e conservadores de museus. Em outras palavras, por mais que a ideia de autonomia tenha prosperado no Ocidente, nenhum animal, mesmo o humano, seria capaz de viver sozinho — e o artista parece estar bastante consciente disso. Os trabalhos da série CLN, por exemplo, apesar de fazerem referência direta à catalogação colonial, remetem também à acepção de colônia que designa associações interespécies de vários indivíduos, como os recifes de corais ou as caravelas-portuguesas (organismo que parece ser o exato oposto dos barcos que têm o mesmo nome, sem hífen). Colônias, caravelas, esculturas, fios. Mais uma vez, a obra de Marcolini traz em si a ambivalência de sentidos aliada à maleabilidade das formas, e assim escapa à rigidez totalizante que é típica do pensamento ocidental. Ao aludir e recusar os sistemas de representação, inclusive como imagem, pode-se pensar também no avesso do elogio a um suposto “pioneirismo” do artista moderno — tal qual um desbravador — que dá lugar a uma genealogia de diálogos formais e conceituais, tanto com outros artistas, quanto com seres não humanos. Como não lembrar dos “véus” que nascem nos cogumelos da família Phallaceae, ou das esculturas da artista nipo-estadunidense Ruth Asawa, a quem interessava explorar a relação “interdependente e integral” entre interior e exterior? Também a brasileira Ana Maria Tavares fez obras em metal trançado, em homenagem ao rio Cocó, que corre no atual território do Ceará para desaguar no oceano Atlântico, em plena capital. Tecendo fios de diversos metais e levando em conta as múltiplas formas de associação, Caio Marcolini parece nos dizer que as formas de vida, de arte e de insubordinação estão aí, apesar de tudo. Não é necessário cavar o mármore com força, como gostaria o padre Vieira: as obras vão se multiplicando, rearranjando-se e tomando parte (sempre provisória) de novas paisagens. Fotos: Rafael Barros ¹ CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002, p. 184.
- SAGRADO RISCO DO INFAMILIAR
Íntima do lápis de cor e do grafite, é principalmente no desenho que Juliana Lapa (Carpina, PE - 1985) encontra uma superfície sinestésica que evoca recordações familiares, das vivências profusas das mulheres, do campo e da terra. Conversei com a artista sobre o seu desejo de dividir as memórias que estão impressas no seu trabalho. Juliana também compartilha os primeiros contatos com o desenho, suas referências visuais e a necessidade de ampliar diálogos sobre arte contemporânea em cidades interioranas. Festa da Morte, 2019 ELIZABETH BANDEIRA - Sua pesquisa se desenvolve a partir do desenho minucioso, envolto por uma linguagem artística poética e intimista. Em tempos de interfaces e digitalização, você segue lidando com o papel. Qual é a sua história com o desenho? O que te aproximou dessa técnica? JULIANA LAPA - Não sentia ter uma escolha. O desenho veio a mim da mesma forma que vejo surgir na minha filha pequena, como um caminho natural para desenvolver minhas pesquisas. Essa técnica tem algo relativo aos primórdios. O desenho me permite entrar mais e mais no fazer artístico, pois é um manuseio melindroso. Busco a construção de algo profundo com o risco, com a linha que deslancha. O grafite me proporciona um fazer artesanal, cotidiano e meditativo. Minha história com o desenho também vai desde as minhas origens — ter crescido na Mata Norte de Pernambuco e ser envolta pelas histórias das mulheres de lá, que se misturam com as da minha mãe e com as minhas próprias. Essa técnica se aproxima de um lugar da infância até no momento da fabulação, na busca por contar algo através do prazer que é desenhar. Fotos: Danilo Galvão EB - Você poderia exemplificar como as fábulas se apresentam nessas obras? JL - Existe no meu desenho uma estrutura que conta uma história. Eu chamo isso de fábula. Uma obra que detalha bem essas narrativas que busco transmitir é A Festa da Morte . Para nomeá-la, usei como ferramenta o Tarô de Marselha, que me apresentou o Arcano 13, A Morte. Quando você olha essa figura enorme no desenho, o movimento dela lembra a obra Caronte , de Alexander Litovchenko, que data do século XIX. Esse personagem da mitologia grega é quem faz a travessia das almas para o mundo dos mortos. A lança dessa figura paira na obra sobre um crucifixo pregado na cabeça de uma mulher. A figura estaria anunciando um novo momento, uma nova ordem, uma ordem feminina, que se desfaz de controles sociais, os quais induzem culpa e dor. O estudo dos símbolos cria mais janelas para compreendermos aquilo que não conseguimos ver nitidamente. EB - Qual é a diferença da processualidade do desenho para a pintura no seu fazer? JL - Percebo mais a passagem do tempo quando pinto. Porque a pintura é uma técnica que requer mais de mim. Tenho que estar presente para a pincelada e a construção da mancha. No desenho, posso trabalhar com mais abstração. Me sinto mais suspensa sobre ele, colocando-me em um estado de permanência. O desenho, para mim, pode ser até como um mecanismo de fruição e meditação. Existe uma busca e o desenho é a ferramenta que uso nesse processo intuitivo. Brasa e água, 2017 - 2019 EB - Você poderia falar um pouco sobre como foi a experiência do seu projeto de livro Sorte, saúde e felicidade ? JL - Em 2019, para fazer essa pesquisa, saí de carro pelo interior de Pernambuco, seguindo pelos municípios de Buíque, Exu, Santa-Maria da Boa Vista, Ingazeira e Carpina. Dentro desses lugares, o que havia em comum eram as histórias e vivências de mulheres agricultoras, ou mulheres que viviam em lugares com agricultura, como era a horta comunitária Djanira Menezes. Infelizmente ela está inativa agora, mas foi muito interessante conhecer esse espaço organizado por mulheres do assentamento Boqueirão, em Santa-Maria da Boa Vista, às margens da estrada da reforma agrária. Toda essa pesquisa também é permeada pela história da minha mãe. É como se tivesse entrado em um assunto que talvez dure a vida toda em mim e na minha arte, que é o cuidado com o campo, a relação transcendental e elementar entre a mulher e a terra. Trabalho em horta comunitária organizada por mulheres do assentamento Boqueirão, em Santa-Maria da Boa Vista / Acervo pessoal EB - Existe uma itinerância contínua na sua trajetória. Você já morou em Carpina, Recife, Olinda, Florianópolis e, mais recentemente, Montreal, no Canadá. De que forma esse processo migratório toca na sua linguagem artística e nas suas produções? JL - Quando me desloco, a memória do lugar onde vivi passa a ser outra coisa, mas não em um sentido nostálgico. Fui para Florianópolis por causa da minha sogra, que faleceu. Nunca foi “Ah, agora vamos viver em uma nova cidade!”. A gente se mudou para ajudar e acompanhar esse momento. E aí rolou a pandemia da covid-19 e ficamos confinados em Floripa. Logo depois engravidei e segui por lá de 2021 a 2023, quando precisei voltar para Pernambuco para cuidar da minha mãe, que estava com Alzheimer, e que, em dezembro, faleceu. Quando estava em Carpina, já sentia Floripa através de uma atmosfera de sonho, de lembrança, de memória. Como uma beterraba que você deixa no canto por vários dias: ela vai se transformando em outra coisa, forma ramos. Existe essa transformação da memória. Atualmente quero firmar minha base aqui no Recife, mas quando fazia esses processos migratórios também tinha um pouco de sair daqui para olhar para cá com uma certa distância que estando dentro eu não conseguiria enxergar. Colheita Noturna, 2023 Outro ponto é que achava que poderia criar de qualquer lugar do mundo, mas não sou esse tipo de artista. Por exemplo, em 2020, morava na casa dos meus sogros e estava sem espaço para criar. Foi um ano que passou devagar, até pelo clima pandêmico, que se traduziu em Necrópole , o único desenho que fiz nesse período. Em Olinda tinha um ateliê, então eram trabalhos maiores. Já no Canadá, país que fiquei de novembro de 2023 a maio de 2024, o processo foi mais frio e solitário. Entendi que, para criar, preciso estar no meu lugar, estar em conexão com as pessoas da minha cultura. Essa peregrinação foi uma busca por identidade que eu mesma nem sabia que estava buscando. Necrópole, 2020 EB - Você rememora muito sobre Carpina, não à toa um dos seus últimos projetos, a Casa Viva , foi situado em um casarão antigo na sua cidade natal. A existência deste projeto também implica discussões sobre a preservação do patrimônio histórico. Por que foi importante a escolha desse espaço no município? Você tem alguma memória relacionada a ele antes da Casa Viva ? JL - Ele é um dos casarões mais antigos de Carpina, que é uma cidade fundada há 115 anos. A minha avó foi morar no município na década de 1950 e esse casarão, que já era erguido há muitos anos, ficava de frente para a casinha da minha família. Eu me lembro dele quando era pequena, parecia mal-assombrado. Quando pensei em fazer uma exposição em Carpina, articulei junto a Bruna Rafaella Ferrer ¹ onde esse projeto poderia ser executado, já que não havia ali um espaço voltado para artes visuais. Achamos interessante abrir essa discussão sobre patrimônio na cidade porque está tudo sendo derrubado, e não é só em Carpina. Reabrir esse casarão foi também poder falar de sonho. Zona da Saudade da Mata Norte, 2023, Foto: Danilo Galvão EB - O papel do educativo no desenvolvimento da Casa Viva foi fundamental. Inclusive, são citadas no material didático do projeto algumas atividades propostas para o público visitante, como os mapas afetivos e a frottage . Queria saber porque foram escolhidas essas duas ações e quais rotas foram percebidas, tanto por você, quanto pelo educativo, neste processo de estímulo à emancipação cognitiva? JL - A abordagem da Casa Viva veio de um desejo de nos comunicarmos e trocarmos com o município. Buscamos estimular um pensamento ativo em quem adentrasse na Casa . Quem entrava ali podia ver e brincar com as obras. Elas podiam ser tocadas. Oferecemos bolo e café, tinha algo de hospitalidade que falta em galerias e espaços artísticos, rodeados por paredes brancas enormes e seguranças na porta. A frottage é uma técnica surrealista de produção de imagem. A casa tinha muitas texturas, relevos e pisos com desenhos interessantes, tudo ali era para ser experienciado. Muitas pessoas perceberam que desenhar é algo mais simples do que se imagina. Tinha também o exercício da Pintura sem Fim , onde cada pessoa contava uma narrativa a partir da junção das faces de cubos. Era interessante, pois recebíamos muitas escolas e esses jovens contavam histórias de feminicídio, um assunto latente na cidade. Temas difíceis de serem tratados na escola surgiam espontaneamente na Casa Viva . Foi importantíssimo produzir uma arte que abre para o diálogo tangível, possível de ser discutido e compartilhado. O educativo não trabalhou no sentido de conduzir, mas de acolher e dar suporte às ações que aconteciam ali dentro. EB - O que você traz consigo a partir da conclusão das atividades na Casa Viva ? JL - Sentir-se à vontade no espaço artístico também é função do artista. Estamos fazendo uma proposição de mundo. Gostaria de propor um lugar de diálogo e de experimentação. Quem visitava o espaço podia tocar em tudo. No final, as obras tinham um rastro das mãos e achei aquilo lindo, porque as pessoas deixavam também a sua marca. Podia ver onde os visitantes pegavam mais nas obras: existe um trabalho de uma mulher azul que jorra sangue vermelho de guache do seu peito. As pessoas tocavam muito ali. Teve uma experiência com uma visitante, acho que ela era do município de Lagoa do Carro, que falou pra mim que nunca tinha tocado em uma obra de arte e quando passou a mão nessa obra, sentiu na boca um gosto de sangue. Achei essa fala muito forte. Claro que isso diz mais sobre ela do que sobre o meu trabalho, mas foi possível dar essa abertura a alguém por meio desse espaço artístico. Roda a saia, 2023 EB - Seu trabalho preza pela minúcia de detalhes. Quais são as suas referências artísticas? JL - Recorro como referência às pinturas medievais e renascentistas. Gosto de Pieter Bruegel ² e Giotto di Bondone ³ . Tenho uma verdadeira paixão pelo trabalho de Georgia O'Keeffe ⁴ , porque acho desafiador entrar naquele mundo silencioso. O meu trabalho tem ruído, informações que parece que gritam às vezes. Então, quando vejo qualquer trabalho da Georgia me questiono como chegar ali. Bruegel me ensinou como contar uma história dentro de um espaço de tempo. É um trabalho assumidamente espiritual e encaro a minha produção da mesma maneira. Encontrei referências na literatura também, estou lendo atualmente o artigo A serpente como símbolo do tempo da arte latino-americana , de autoria da pesquisadora Marcela Botelho Tavares. Riacho das Almas, 2019 EB - Conjugar a produção artística nas vivências da maternidade pode ser um grande desafio. A experiência de criar alguém se transformou em matéria criativa para suas obras? Como o maternar e a figura da mãe atravessam a sua vida atualmente? JL - Quando descobri que estava grávida, fiquei “Eita, que massa!”. Sempre desenhei figuras grávidas, o ventre, a gestação. É uma coisa bizarra fazer crescer uma pessoa dentro da sua barriga. Gosto também dos símbolos que isso tem, o ventre como um recipiente alquímico. No meu desenho, no entanto, ainda estava dentro de um ciclo que havia se iniciado há um tempo atrás. No momento que compreendi minha condição, que era muito profunda — e esse entendimento só o tempo poderia dizer —, comecei a desenhar a gestação com muitos fluxos: veio muita água, usei bastante tinta e pincel. Percebi que meu trabalho mudou porque comecei a colocar cores nas obras. Antes, só investia no grafite ou no monocromático. Quando penso sobre a temática do maternar na minha vida, entendo que é muito difícil ser mãe e ser artista. É difícil o cansaço mental, porque por mais que meu marido esteja ali dando o melhor dele para cuidar da bebê, a minha filha só quer fazer tudo comigo. Não é humanamente possível cuidar de uma outra pessoa nesse nível que a maternidade exige. É tão pesado que corre o risco de tirar o brilho do trabalho. Acho que o processo de me tornar mãe me aterrou muito. Mas não vou deixar de ser Juliana para ser só a mãe de Maria. Trabalho conciliando esses papéis. Autorretrato grávida, 2021 EB - Seus estudos sobre as suas séries de desenho são registrados em diários. Qual a sua relação com esses cadernos e de que forma a escrita atravessa o processo de feitura de suas obras? JL - O meu trabalho atravessa uma pesquisa sobre a minha vida e principalmente sobre os meus sonhos. Realizo o exercício de trazer para o mundo tangível esse aspecto onírico por meio do papel. Escrevo no caderno como um processo de liberação de fluxo de ideias, no qual anoto palavras, cores, gestos, a atmosfera de sonhos... Isso é importante para a minha construção de imagens, que entra no campo da poesia, da reflexão filosófica e teórica. O resultado é pictórico, mas a imagem é só a pontinha de um processo que se inicia a partir da busca nesse campo invisível, incomum e subconsciente. Acervo pessoal EB - Quais são as histórias que você busca contar através do seu trabalho? Quais memórias e temáticas seguem rondando a sua produção? JL - Sinto que vem muito conteúdo pessoal para a minha obra, mas não no sentido psicanalítico. Uso os recursos que tenho de história de vida para poder falar sobre mulheres, natureza, as memórias de Carpina, que é minha cidade natal, e as histórias da minha família, especialmente aquelas que envolvem a minha mãe. Ela era uma pessoa peculiar: nasceu no Agreste, teve uma história de vida marcada por abusos familiares e violência dentro do espaço rural, nas plantações de algodão. Minha mãe também foi uma figura central para minha formação técnica, porque aprendi desenho com ela. Cresci observando ela pintar panos de prato para vender, daqueles com imagens de vela, maçãs e umas bananas, todos esses elementos misturados em um acessório de cozinha. Por causa dessa influência, até hoje uso tintas de tecido Acrilex no meu trabalho. Estou adentrando na minha arte temáticas de matrilinearidade ⁵ , que permeiam os meus sonhos e as lembranças do meu fazer artístico. Tenho símbolos recorrentes. A mulher, o corpo, a ferida, a dor, a paisagem enquanto corpo, que também expressa uma emoção. Todas essas paisagens dizem alguma coisa, quase como se fosse um terceiro personagem. A Experiência Confirma as Suas Visões, 2018 Quem é essa paisagem? Porque ela se comporta dessa forma? A partir da recorrência das histórias que são contadas na obra fui fazendo uma auto-análise. Os meus diários de criação também expressam esses caminhos. Os cadernos vão me dando esse indício do que a imagem estava tentando puxar, pois são duas linguagens que se complementam. É como se eu me encontrasse no processo de escrita desses diários de bordo e o desenho acolhesse as histórias que fazem parte de mim para transformá-las em alguma mensagem. As fábulas de várias mulheres desaguam no meu ofício, especialmente aquelas que envolvem a minha mãe. Queria fazer algo com essas histórias, que também ressonam com as minhas e de muitas outras mulheres. Juliana Lapa (Carpina, PE - 1985) nutre os cuidados emocionais e ecológicos dentro da sua prática artística. Íntima às técnicas artesanais, seja pelo manuseio do lápis de cor e do grafite em suas obras, é no desenho que a artista encontra uma superfície sinestésica capaz de abrir diálogos contínuos sobre as histórias do campo, entrecortadas por memórias coletivas e aquelas que pertencem ao seu íntimo familiar, assim como de temáticas relacionadas às vivências profusas das mulheres. Em conversa com a redatora da Propágulo, a entrevistada discute seu desejo em compartilhar as memórias que estão impressas no seu trabalho, além de desvelar os primeiros contatos com o desenho, suas referências visuais e a necessidade de abrir um diálogo sobre arte em cidades interioranas. ¹ Bruna Rafaella Ferrer (PE - 1983) é nascida em Vitória de Santo Antão. Coordena o grupo de desenho e performance de modelo vivo Risco!. Atualmente é artista pesquisadora, junto com Luana Andrade, no projeto Educação como ____. , em que integra processos artísticos e pedagógicos para investigar o que chamam de situações pedagógicas. ² Pieter Bruegel (NLD - 1525–1569), o Velho, foi o artista mais importante da pintura renascentista flamenga e brabantina, um pintor e gravurista da região de Brabante, conhecido por suas retratações de paisagens e cenas camponesas; foi também o primeiro pioneiro que optou em fazer as duas modalidades de foco em suas pinturas de destaque. ³ Giotto di Bondone (IT - 1267–1337) foi um pintor e arquiteto italiano. Considerado o precursor da pintura renascentista. ⁴ Georgia O'Keeffe (USA - 1887–1986) foi uma pintora estadunidense. Conhecida por suas pinturas com foco em detalhes de flores, a paisagem do Novo México e os arranha-céus de Nova Iorque, é considerada hoje como a “mãe” do modernismo dos Estados Unidos. ⁵ Matrilinearidade é uma classificação ou organização de um povo, grupo populacional, família, clã ou linhagem em que a descendência é contada em linha materna.
- TERRAS EM TRAVESSIA
“Caminhar pra trás, enganar o invasor”: biarritzzz e abr0s me gritaram em 2022 através de um curupira que caminhava pra trás, acompanhado dessa frase pixada num tapume pelas ruas. Se quem me ler for uma pessoa racializada que habita os diversos não-lugares das cidades, talvez possa reconhecer a emergência que mora nesse grito. Eu reconheci que não estava sozinha. É que desde 2020, em meio às incertezas do começo da pandemia, eu já andava caminhando pra trás junto a minha mãe e duas mais velhas da família, seguindo as pistas que a oralidade foi trazendo. O medo de perder essa nossa memória viva para o enorme descaso com a vida que imperava naquele período, fez a gente usar o que tinha para documentar o que guardávamos só na oralidade: desenho, pintura e as ferramentas contidas nos dispositivos móveis. Alguns desses achados, comecei a sistematizar através da arte, enquanto artista-pesquisadora no Núcleo de Práticas Artísticas Autobiogeográficas da UFG, depois esses e outros achados se tornaram meu projeto de mestrado em Antropologia Social, pela UFPB. Vim aqui contar um pouco do que fui encontrando nesse caminho: PASSOS QUE VEM DE LONGE Comecei me perguntando se eu poderia dizer que viajar ou talvez imigrar é uma tradição ancestral na minha família... É que pelo menos desde a geração dos pais da minha bisavó (que é até onde nossa memória familiar alcança) que temos o costume de ir morar em outro lugar que não o de nosso nascimento. Nessa pesquisa, além dos achados preciosos da oralidade, eu e minha mãe descobrimos alguns documentos sugerindo que talvez essa itinerância nossa seja muito mais ancestral do que a gente imaginava. Vou contextualizar vocês. Eu nasci em Recife, já mainha nasceu em Natal e hoje em dia mora no Sul da Bahia. Sua mãe foi uma das poucas da família a arriscar sair de Limoeiro do Norte - CE pra morar numa capital (Recife), mas é a história da família do pai da minha mãe que realmente me impressionou: meu avô materno nasceu no Rio de Janeiro, mas só por que sua mãe, minha bisavó, nascida e criada numa casa de taipa no bairro do Alecrim em Natal, não queria que o filho fosse registrado como nordestino (o mesmo aconteceu com minha tia-avó, anos depois). Mas o mesmo navio que a levou pra ter os filhos no Rio, depois trouxe todos de volta pra morar em Natal. O navio em questão era onde trabalhava meu bisavô, um capoeirista cuja família é de Valença-BA e que fazia parte da tripulação da marinha. O conheci quando nem me entendia por gente ainda, no finalzinho de sua vida. A bisa cheguei a morar com ela quando criança (enquanto minha mãe viajava) e durante minha graduação em Artes Visuais até 2012, quando eu me formei e ela veio a falecer. Não sabemos precisamente de que terra vieram os ancestrais da bisa Izabel, só temos a afirmação trazida pela memória de minha tia-avó Iza e por sua prima Adilse que minha bisa era descendente de indígenas e que sua mãe, Maria, era nascida em Igreja Nova (RN) e descendente de uma família que veio do Seridó. Vó Maria era rezadeira da comunidade onde foi morar (depois de casada) no bairro do Alecrim, na época que essa região era uma periferia cujo chão era de areia branca e as casas feitas de barro, aos arredores de Natal. Com a ajuda desses e outros relatos orais vindos de duas mais velhas da minha família, cruzando com relatos do povo que hoje habita a região de seu nascimento, recriei um retrato pra Vó Maria: Vó Maria Tarairiú, geotinta, tecido e folhas de manjerioba sobre tela, por Ianah Movida pela curiosidade de conhecer os lugares que já fizeram parte da história desse ramo da minha família, comecei uma série de itinerâncias por essa nossa memória. Como já era meu costume, fui coletando amostras das terras desses territórios para minha coleção de pigmentos naturais, que fabrico artesanalmente desde 2017 no meu ateliê pra fazer pinturas. Mas agora passei a me indagar: já que não temos uma terra de onde viemos, seria essa minha forma de “ter” todas as terras por onde as itinerâncias negras e indígenas da minha família já passaram? Andei atenta às cores das terras nos entre-lugares de Recife, Valença, Salvador, Natal, Macaíba, São Gonçalo do Amarante, Acari, Currais Novos, etc. Fiz uma cartografia cromática a partir dessa vivência, numa obra chamada Travessia Demarcada (2023). Travessia demarcada, geotinta sobre tela, galhos de jurema, fios de algodão e palha da costa, por Ianah TEM GENTE MORANDO NESSE CAMINHO Nessas andanças, fui conhecendo algumas pessoas que hoje residem em alguns desses territórios, e fiquei encantada ao saber que pertinho de um dos lugares da nossa memória, tem um povo lutando por sua terra e contra o apagamento da sua história e etnicidade ¹ : A Comunidade Indígena Tapuia Tarairiú Lagoa do Tapará. Essa comunidade fica num entre-lugar periurbano da Grande Natal, entre os municípios de Macaíba-RN e São Gonçalo do Amarante-RN, da qual Igreja Nova é atualmente distrito. Fui apresentada a essa comunidade através do olhar de uma família de artesãos, que me acolheram e se reconheceram nas minhas intinerâncias familiares. Josué Kyalonã Campêlo, artesão e uma das lideranças da comunidade, e sua esposa Akriptzé, me falaram que suas famílias também são um tanto itinerantes: ele morou muito tempo em São Paulo e a família dela vem do Seridó. Kyalonã me indicou algumas leituras sobre uma possível tradição semi-nômade dos Tapuia, entre elas, o texto de Olavo Medeiros Filho ² , que afirma que eles “mudavam frequentemente de acampamento, ao sabor das contingências alimentares” (FILHO, 1999, p. 249). Foi aí que todas essas nossas andanças fizeram um especial sentido pra mim: talvez faça mesmo muito tempo que a gente seja itinerante. Fui chamada por eles pra ajudar na organização da Feira Cultural que acontece todo ano em Maio, e desde 2022 tenho me somado a essa mobilização da comunidade ajudando principalmente a fazer os materiais gráficose em 2023, a cacica Francisca me chamou pra criar a arte da camisa e do cartaz desse evento, o que fiz com muito prazer, usando como referência os grafismos que Kyalonã já usava pra ilustrar a constelação do Setestrelo (um dos símbolos da re-existência Tarairiu) em seus artesanatos. À esquerda, Design da camisa da VII Feira Cultural Tapuia Tarairiú; à direita, Maracás feitos por Josué Quando contei sobre esse encontro com o Tapará e as artes feitas pra Feira pra minha tia-avó, ela me contou que aprendeu com sua mãe (a bisa Izabel) a reconhecer a constelação do setestrelo no céu. Ela me contou que se orgulhava de ser a única na sua turma da escola a ter conhecimento da existência do Setestrelo, embora talvez já não mais soubesse da conexão ancestral que essa constelação tem com as festividades da colheita, celebrada pelos Tarairius em retomada hoje em dia. Quando mostrei a Josué Kyalonã o vídeo em que ela falava sobre essa constelação, ele me disse, em uma entrevista concedida também em vídeo: [...] o fato de você ter na família alguém que cita o setestrelo, isso é muito importante, por que nem toda família tem esse privilégio na sua história oral, na oralidade. Então se chegou até você pela oralidade é uma prova, pra nós povos indígenas, é uma prova muito forte inclusive da linhagem da tua família. (informação verbal) ³ Desde que entendi que existem grandes chances da minha ancestralidade indígena vir dessa mesma nação sertaneja, passei a usar também pontualmente o Setestrelo em algumas obras minhas, sempre que quero fazer referência a esse caminhar pra trás ou diretamente a essa ascendência. Como na obra A Visita do Setestrelo, que é o retrato de um sonho que tive enquanto estava passando um período lá na comunidade do Tapará. A Vista do Setestrelo, geotinta sobre tela, por Ianah Não pretendo com isso fazer nenhuma afirmação identitária, necessariamente, mas mais do que tudo, fazer o que foi sugerido por Sidarta Ribeiro em seu livro Sonho Manifesto (2022): saudar e honrar nossas melhores ancestralidades. POR OUTRAS ROTAS Nessa busca, além de mergulhar nas estradas entre Recife e Rio Grande do Norte, também fui buscando referências e inspirações com artistas de outros povos, que também andaram fazendo esse movimento de usar a arte para caminhar pra trás, em direção a um futuro ancestral. Como é o caso do artista Luis May, escultor e ceramista da etnia Maya, que tem seu ateliê em Cobá, México, uma das zonas arqueológicas mais extensas (e ainda não tão desvendadas) do seu povo. Luis é escultor, trabalha com cerâmica, madeira e usa o barro pra retratar pessoas da sua cidade. E além das esculturas bastante realistas, Luis também tem estudado técnicas pré-hispânicas de arte, como uma forma de despertar uma cultura que anda um pouco adormecida, mas presente, entre os seus. Esse ano, depois de ser selecionada para uma bolsa de mobilidade artística pela FUNARTE, fui aprender com Luis sobre arte e sobre a história de (re)existência ⁴ do seu povo. Luis tem se destacado nessas suas pesquisas ancestrais principalmente pelo sucesso que ele teve ao recriar a antiga (e até então perdida) receita para o Azul Maya, pigmento milenar que já foi datado em alguns templos Maya (como o de Bonampak) como uma cor que está resistindo ao tempo desde muito antes da invasão espanhola. Esse pigmento é feito a base de terra e outros ingredientes naturais que estão muito bem guardados em segredo entre os parentes de Luis. ⁵ Lá no seu ateliê aprendi a fazer cerâmica, reboco, pigmentos e aglutinantes naturais, seguindo a tradição pré-hispânica dos Maya. Aprendi também que existem outros artistas também fazendo essa re-existência ancestral entre os Maya que habitam o campo e as cidades, e que quase sempre a arte está no front em suas lutas. Artes feitas por Ianah e Luis May durante a residência artística / Acervo pessoal de Ianah Voltei do México em Maio deste ano com mais uma cor de terra na bagagem. Uma terra pintada de um azul que é natural assim como a cultura Maya que ainda molda e re-existe naquela região. Tenho minha primeira terra internacional na minha coleção, também o primeiro azul pra minha paleta. Tenho também bastante material pra transcrever nos áudios gravados em campo e muito trabalho pela frente nas minhas andanças para pesquisas artísticas e acadêmicas. E vi que de fato nem de longe estou sozinha nesse caminhar pra trás. De fato não pertenço a nenhuma dessas terras por onde passo. Não o suficiente pra dizer que qualquer uma delas seja a “minha” terra (talvez Recife, onde fui uma das poucas da família a nascer e ser criada). Mas todas essas terras pertencem às cores da minha travessia, que pelo visto já vem acontecendo há muito mais que 500 anos e há de seguir acontecendo por pelo menos uma vida inteira. Aprendi com a agroecologia que os saberes são sementes a serem dispersadas e multiplicadas. Se tudo der certo, essas sementes da memória hão de reflorestar todo o apagamento feito nas terras desse caminho. Autocultivo III, pintura com terra, por Ianah ¹ CARVALHO, F. P. De; MARQUES, J.; FIALHO, V. Tapuias Tarairiús da Lagoa do Tapará: Origens, Cultura e Ambiente. Nova Cartografia Social do Nordeste, 2021. n. 1. ² FILHO, O. M. Os Tarairiús, Extintos Indígenas do Nordeste. Em: ALMEIDA, L. S. De; GALINDO, M.; SILVA, E. (Org.). Índios do Nordeste: Temas e Problemas. Maceió: EdUFAL, 1999. ³ CAMPÊLO, Josué Kyalonã Jerônimo. Entrevista Josué 2. [jun. 2022]. Entrevistadora: Ianah Maia de Mello. Macaíba, 2022. Entrevista Josué 2.mov (59 segs). ⁴ ALBÁN ACHINTE, A. Arte y estética en la encrucijada descolonial. 2a edición ed. Buenos Aires: Ediciones del Signo, 2009 (p. 94, rodapé). ⁵ MELLO, Ianah Maia. Diário de Campo: Residência Artística Ancestral. Cobá, México [s.I] , 2024.
- SIMBOLOGIA ANCESTRAL NA ARTE DE DIOGUM
Em conversa com a redatora Elizabeth Bandeira, Diogum (1986) compartilha a sua trajetória artística, desde a infância até a rotina de criação das suas esculturas em ferro. O diálogo também acompanha a história por trás da obra "Ofá de Oxóssi" e quais as principais referências que refletem no trabalho atual do artista. ELIZABETH BANDEIRA - Qual o seu nome, sua idade e de onde você é? DIOGUM - Olá, me chamo Diogum. Tenho 38 anos e sou um artista pernambucano, morador de Bonsucesso, bairro histórico de Olinda, que sedia o Homem da Meia-Noite. EB - Você poderia contar pra gente quais são as suas memórias iniciais com esse material? Além disso, de que forma esses elementos são conectados com o início da sua trajetória artística? D - Esses elementos estão presentes na minha vida desde a infância. Quando criança, meus brinquedos, até carrinhos pequenos, eram de ferro ou aço. Tinha acesso a esses materiais porque meu pai, Zaqueu, também era metalúrgico e um grande serralheiro. Era meu mestre e um cara muito sábio. Aprendi com ele a técnica, mas fui desenvolver minha arte depois de adulto. EB - Como é o seu processo criativo? Do rascunho até a materialização do seu trabalho. D- Às vezes faço o rascunho da peça na minha bancada de trabalho, ou passo para o papel. Para as minhas esculturas de Ofá, me inspirei em pencas de balangandãs, que são jóias crioulas do século XIX. Naquela época, os ourives pretos não podiam ter as mesmas jóias que os brancos, ou da Coroa Real, então eles fabricavam seus próprios adornos. Então fui desenvolvendo várias obras que possuem um movimento que evoca leveza. Ogum, que é o senhor do ferro da tecnologia, é meu orixá. Sou ogã também, então meu trabalho é ligado ao contexto da ancestralidade e do candomblé. Por exemplo, o Ofá no múltiplo da Propágulo temos o símbolo de Xangô, um machado da justiça, o símbolo de Exu, representado por um tridente, que é o divino e o terreno, tem o Abebé de Oxum e o peixe para representar Iemanjá. Foi nesse processo de juntar as ferragens de Candomblé com os balangandãs que cheguei no resultado final da minha criação. EB - Quais referências você mobiliza ao realizar suas esculturas e demais produções? D - Trago referências da minha ancestralidade. Quando mais novo, e ainda sem saber que meu orixá era Ogum, me levaram para jogar búzios. Essa minha ligação faz sentido, pois cresci com pessoas que trabalhavam com metal, um material fundamental para o estreitamento das relações com esta entidade. Eu pratico capoeira e também toco afoxé, então tudo que faço tem pertencimento e força da ancestralidade. Além disso, minha companheira Silvana, que também é artista plástica, me dá muitas dicas e também participa do meu processo. Exposição Ferro Ifé: O Atlântico Negro de Diogum, individual do artista com curadoria de Bruno Albertim na Galeria Amparo 60, em cartaz de 04 de junho a 05 de setembro. Fotografias: Danilo Galvão EB - Como é ser um artista negro, que é autor de uma obra tão política e ancestral, e adentrar espaços ainda muito envoltos pelos códigos da branquitude, como são as galerias de arte? D - O meu processo dentro das galerias está sendo muito importante para mim, mas acredito que está sendo ainda mais importante para as pessoas que as compõem, e aos tantos pretos que, ao me verem ali, também sabem que é possível ocupar esses espaços. As artes visuais sempre foram um lugar de branquitude e de uma elite branca, por conta disso nós vemos ainda tantos artistas pretos com um talento incrível, mas que ainda não estão dentro desses lugares. Enxergo nesse momento que estamos vivendo uma força ainda maior ao trabalho de artistas negros, que se destacam por sua originalidade, como Jeff Alan e Derlon Almeida, por exemplo. EB - Quais discussões você busca reverberar com as suas obras? D - Gosto de trazer o conceito da ancestralidade, tanto em sua beleza, como na proteção, nas minhas obras. São esculturas que trazem esse axé e harmonia para dentro de casa. Trabalho com a força dos símbolos, que remetem ao passado e ao presente, como aquilo representado pela Sankofa. Os símbolos têm poder, então gosto de trazer essa luz e encantamento para o ferro, que por si só já é uma coisa bruta, forte. Quando você vê a obra com calma, já lhe causa uma certa segurança e fé, que é o que busco transpor para a minha criação. Assine e receba! O múltiplo de arte “Ofá de Oxossi”, de Diogum, foi feito em serigrafia sobre papel canson 200g. As artes são assinadas e numeradas pelo artista e contam com certificado de autenticidade. Com novos planos e modalidades, o Clube de Assinantes da Propágulo é o ponto de encontro para quem busca colecionar e se aprofundar sobre arte. Fazendo parte deste programa, você recebe nossas revistas, livros e múltiplos de arte por um preço especial, além de garantir uma série de benefícios, como gratuidade em cursos, acessos exclusivos ao editorial do site, notícias antecipadas dos nossos lançamentos, e muito mais!
- A FAMÍLIA CARNEIRO DA CUNHA
Nesta entrevista que se tornou base para o texto Wilson, o fotógrafo ímpar , sobre o fotojornalista recifense Wilson Carneiro da Cunha na revista Propágulo 09, Guilherme Moraes conversa com Bia Lima, neta de Wilson e pesquisadora de sua produção fotográfica. No material é possível perceber a importância de outros personagens que contribuíram para o legado do fotógrafo, como Conceição Carneiro da Cunha, sua esposa e idealizadora do célebre Kiosque do Wilson, Olegária Carneiro da Cunha, filha mais velha do casal e guardiã do acervo imagético da família, e Wilson Carneiro da Cunha Filho, por muitos anos o assistente oficial de seu pai. Guilherme Moraes - Wilson Carneiro da Cunha possui uma produção vasta em fotografia. Como foi criar o recorte para a sua pesquisa, que atravessa os instantâneos de rua e os registros caseiros? Bia Lima - No e-book¹, busquei fazer uma cartografia de como o meu avô perpassa a história do centro. Wilson Carneiro da Cunha é um personagem do centro, viu e registrou muitos acontecimentos, viveu aquilo ali intensamente. O centro do Recife era a vida dele. Acho que ele passava mais tempo na rua do que em casa. Ele se encontrava em um contexto de privilégio, e por isso tinha acesso a eventos sociais, a festas em clubes, à polícia! Falo de uma época em que trabalhar como fotógrafo era algo informalíssimo. Ele se intitulava fotojornalista. Mas, pesquisando sobre seu acervo, notei que existe uma linguagem própria, com características fortes dele, uma série de escolhas estéticas feitas para retratar o Recife. Parte disso pode ser questionado, né? Ele também tirava fotos das pessoas na rua, de outros personagens do centro. Era comum que trouxesse uma glamourização para o que retratava. Wilson era apaixonado pelo imaginário de Hollywood. Olha essa foto aqui! No desfile de 7 de Setembro, ele tirando foto da pomba que atrapalhou o desfile. O guarda de quatro! Esse é outro aspecto da sua produção: os flagrantes. Ele gostava da ideia de tirar fotos sem que a pessoa percebesse. Foto de menino fazendo cocô no rio, de meninos pulando da ponte, de bêbado fazendo xixi no poste… Ele abraçou mesmo essa estética. GM - Então ele realmente não tirava a Câmera do pescoço. BL - Minha mãe, Ramona, dizia que ele ficava colado com a câmera, como se fosse um membro dele. Ele vivia com a Rolleiflex para todo canto. Outro aspecto que acho icônico e que faz parte do imaginário do centro do Recife daquela época é a ideia do Kiosque! Aquele lugar que funcionava tanto como uma galeria quanto um lugar onde ele vendia seus serviços enquanto fotógrafo. Embora eu tenha procurado, nunca fiquei sabendo de nenhum outro quiosque específico de fotografia aqui em Recife ou em um outra cidade do Brasil. Por conta do Kiosque é que ele começou a ficar conhecido. Ficava na Rua Nova, no oitão da Igreja de Santo Antônio, quando ainda passava carro por lá, então era um agito absurdo! GM - Percebo que Wilson era conhecido por ter uma certa excentricidade. São diversos os fatores: o Kiosque é um desses elementos, mas ele colecionava restos de demolição, tinha a mão mais escura que o corpo porque revelava as fotografias sem proteção… BL - Quando comecei a entrevistar meus tios e minha mãe, notei que eles nunca tiveram essa percepção distanciada de quem fora Wilson Carneiro da Cunha, porque era parte da rotina deles, mas ele realmente era alguém singular. Tanto tinha um lado de ser uma pessoa engraçada, extrovertida e tiradora de onda quanto de um lado mais rigoroso dentro de casa, como se tivesse 2 personalidades. Acho que ele tinha uma persona da rua, criada para comunicar essa pompa. Para a minha pesquisa, me apeguei mais a isso. Quis focar realmente na estética dele: o Kiosque, a marca registrada de Wilson… O que acho incrível é a jogada de marketing que ele tinha na época, em plenos anos 50. Wilson carimbava todas as suas fotografias com a marca e o endereço do Kiosque. Ele queria ser notado, queria ter tudo do bom e do melhor, ter a câmera mais nova… Dizia que fora a primeira pessoa da cidade a ter revelado em colorido. Você nunca vai ver um look repetido nas fotos em que ele aparece. A roupa tinha que ser chiquérrima. O carro precisava ter a placa personalizada com o número da sorte dele, 7004, e com “Wilson Foto” escrito. Ele usava camisa florida numa época em que nenhum homem por aqui usava. Na frente de sua casa, por exemplo, constava a placa “Wilson da Cunha, repórter fotográfico”. Pra todo mundo saber que ele morava ali! Ele dizia que tinha ido para os Estados Unidos, saia dando entrevista no jornal, mas era tudo invenção da cabeça dele, que criava para alimentar essa persona. Ele tinha esse fascínio pelas revistas, pelo cinema… tudo girava em torno disso. Na casa dos meus avós tinha aquelas fotos antigas de atores de Hollywood. Ele era o marketing em pessoa, entendeu? Na época ele bombou, soube vender o seu produto e realmente criou os 5 filhos com o dinheiro das fotos. Eles também tinham um apreço por objetos, livros e revistas. Minha avó, principalmente, era uma intelectual, ela lia pra caramba. Eles eram bem acumuladores! Quem guarda muita coisa é minha tia Olegária, que tem 80 anos. Além de documentos, são pilhas e pilhas de fotos reveladas e de negativos guardados. O sonho dela sempre foi abrir um museu da família Carneiro da Cunha. É que paira na família essa coisa de ter um parentesco com o abolicionista José Mariano²... Mas o acervo está disponível para mim. Penso em doar para a Fundação Joaquim Nabuco, mas ainda não fiz isso porque minha tia é apegada ao acervo. É o maior tesouro da vida dela. Parte da produção de Wilson já está na Fundaj. Ele vendeu um segmento do seu acervo para a instituição quando fechou o Kiosque na década de 1980. GM - Qual era a participação de sua avó, Maria Conceição Carneiro da Cunha, nessa história? Gostaria de saber como ela se sentia nesse contexto. Vocês se conheceram? BL - Conheci a minha avó já coroa. Quando eles casaram, ela tinha uns 16 anos e, ele, uns 24. Ela não era aquela esposa tradicional, que faz almoço, que arruma a casa… Não. Ela ficava dentro de casa lendo livros e fumando — ela fumava bastante quando lia. Mas eles sempre tiveram alguém para ajudar em casa. Realmente eles conseguiram viver dentro desse padrão de classe média. Moraram por muito tempo no centro do Recife, na rua da Alegria, em uma casa dessas bem comuns do centro. Quando saíram de lá, buscaram morar na Zona Norte. Saíram do centro, que talvez já tivesse começado a mudar. Só que Wilson continuou trabalhando lá. Ela trabalhava com ele, era a cabeça por trás de muitas coisas, como a criação do Kiosque. Ele tinha essa pose de intelectual, mas era ela! Ela lia e pesquisava pra caramba e falava tudo para ele. Wilson então saía dizendo as coisas que aprendia com ela por aí. Ela passava o dia lendo, esperando meu avô, que trabalhava muito na rua, de noite. Porque ele cobria muita festa, casamento… Ele não parava de trabalhar. Até os anos 70 eles revelavam todas as fotografias em casa. Depois, quando foram melhorando as condições financeiras da casa, começaram a mandá-las para laboratórios. Além do meu avô e da minha avó, tem outra peça fundamental nessa história: o meu tio, que se chamava Wilson também. GM - Sim, tio Gringo. BL - Tio Gringo passou a vida toda trabalhando com meu avô, que fez um negócio a partir da família. Minha tia Olegária não tanto, acho que na época não seria coisa de mulher, mas tio Gringo era o assistente oficial. Os dois tinham uma relação conturbada. Meu tio era gay. Todo mundo já sabia, era uma coisa escancarada. Ele não foi o primogênito normativo que Wilson queria. Depois de um tempo, nos anos 70, ele partiu para Salvador e se soltou na vida. Acontece que o meu tio Gringo também tirava fotos e quando ele se mudou, continuou a fazer isso. Ele fazia roupas de Carnaval, de pedraria, bordadas… Viveu uns bons anos com HIV, mas morreu de um câncer. Ele veio para Recife quando já estava bem malzinho. Ficou no IMIP. Dizem que todo mundo do hospital era apaixonado por ele, porque era uma figura. Tenho muita vontade de puxar a pesquisa para ele, porque devem ter pérolas! Ele tirava fotos de desfiles, tem toda uma série de registros de trabalho, mas também tem as farrinhas dele. Tem umas fotos dos boys, umas dele mesmo lá… Esse acervo está comigo. GM - Penso que uma grande quantidade dos autorretratos de Wilson foram clicados por ele. BL - Com certeza! Os circos também eram uma constante na produção de Wilson. Eu não sei se você viu essa foto. Sério, eu acho uma das mais icônicas. É bizarra, mas eu amo essa foto. É meio creepy um palhaço com meu tio Gringo no colo. Já rodei para achar o nome desse palhaço, mas não achei registro nenhum. Meu avô era viciado no circo. Se tivesse circo na cidade, ia todo domingo. Ele adorava todo tipo de espetáculo. Quando a rainha Elizabeth veio, ele tirou foto. Quando Juscelino Kubitschek veio, ele tirou foto. GM - Você tem alguma noção do posicionamento político de seu avô? Uma boa parte de sua trajetória e da existência do Kiosque atravessa a ditadura militar no Brasil. BL - Ele tinha coisa de ser faladeiro. Mandavam ele calar a boca porque ficava falando mal dos militares lá no Kiosque. Mas, até pelo privilégio de ser um homem branco, cis e de classe média, ele poderia muito bem ter tirado fotografias de denúncia, mas não achei nenhuma do tipo. Como trabalhava para a polícia, talvez tivesse que encobrir algum posicionamento. Sei que não era facista, não achava a ditadura algo bom, mas o real posicionamento dele eu não sei. Ele trabalhou para o prefeito Augusto Lucena³, para todo canto que o prefeito ia ele tinha que ir atrás. Só que era o trabalho dele, tinha que fotografar. Foi por conta disso que ele tirou a foto da demolição da Igreja dos Martírios⁴. Quando eu descobri isso, deu uma virada de chave, porque Wilson foi o único fotógrafo a cobrir essa demolição. Essas fotos estão na Fundaj, são uma sequência incrível! Tem um monte de foto de Augusto Lucena, de baixo para cima, para passar uma pose de força, tem foto dos trabalhadores, tem fotos de ângulos Interessantes de mostrar. De alguma forma, ele estava dentro da máquina. Sei que ele detestava um irmão que era militar, mas, ao mesmo tempo, conhecia um monte de gente, todo mundo passava pelo Kiosque. Então acho que ele fazia essa boa praça. GM - Hoje vivemos em torrentes de imagens, mas imagino como deveria ser impressionante a experiência de dar de cara com o Kiosque, com um acervo enorme de imagens disponíveis no meio da rua naquela época. BL - Uma coisa interessante é que ele fazia questão de mostrar seu trabalho considerado mais autoral. Tinha a parte que era para o povo comprar, os cartões postais de vistas da cidade do Recife. Mas tinha a parte do trabalho com a qual ele se identificava mais, muito atrelada ao que seria o perfil de um fotógrafo etnógrafo. Eram categorizadas por ele como “tipos populares”. Ele expunha no Kiosque como se dissesse “Eu faço isso aqui também”. E conseguia vender! GM - Wilson foi fotógrafo em um momento anterior ao surgimento de especializações e perfis desse tipo de profissional. Era etnógrafo, apreciava o flagrante, cobria eventos, notícias, casos policiais, tirava retratos, entre tantas outras coisas. Mas, em casa, surgia um tipo específico de fotografia: as encenadas, dirigidas por ele, em que a família participava. Como era para sua avó, tios e mãe fazer parte desse processo? BL - Eles odiavam! Minha avó detestava ser fotografada. E a toda hora ele inventava um novo ensaio! Vamos supor que ele comprava 10 rolos de filme para fazer um trabalho e gastava 7 deles. O que sobrava, ele usava para fotografar a família. É foto que não acaba mais! Ele criava um cenário com as frutas, com as taças, com todos na mesma pose em fotografias diferentes diante da geladeira nova — porque tinha que mostrar a geladeira mais nova do mercado e dizer “Eu fui a primeira pessoa a comprar a geladeira” através das fotos. Ele adorava aparecer e transparecer. Tinha uma joalheria lá perto do Kiosque. Toda vez que chegava alguma coisa nova, já dizia “Está separado para Conceição!” e chegava com um colar ou um brinco novo para minha avó. A imagem era muito importante para ele, e por isso ela também vivia nos trinques. Ela costurava as roupinhas iguaizinhas das filhas. Era como se a persona que ele criou tomasse conta da família toda. Mas eles se irritavam, minha mãe disse que tinha hora que ela não queria, mas tinha que participar. Era uma coisa obsessiva! Olha essa foto aqui: isso foi no hospital quando minha avó foi ter filho, ele tirando foto dentro da sala de parto. As enfermeira consternadas, minha avó amarrada na cama… Que coisa bizarra! Tem umas coisas doidas, “Não olha para a câmera, olha pro Horizonte!” e por aí vai, ele tinha essa pira com Hollywood, então acho que ele pegava muita referência de fotos de revistas americanas e europeias. GM - Um série que acho muito peculiar é a das fotografias da Cheia de 75⁵, em que ele fotografou a casa em que morava com sua família alagada, sem abrir mão de uma encenação diante da câmera. BL - Eu acho essa série demais! Está acontecendo uma enchente e a pessoa vai tirar fotos! E ele ainda dirigia, dizia em que lugar cada um tinha que estar. Fui assistente por um dia do meu tio Ramon, que também virou fotógrafo, e percebi que ele também tinha esse jogo da direção da foto. Eu saquei que era por conta do pai que ele fazia isso. É curioso, apesar de Wilson gostar do flagrante, ele tinha essa jogada de querer montar uma cena, dizer uma história com a foto. GM - Acho que foi em 2019 quando saímos para tomar um café e você me falou que estava pensando em escrever o projeto que virou esta pesquisa. Penso nesse recorte de tempo dessa conversa até esta em que nos encontramos. Deve ter sido muito valioso encontrar seu avô ao longo desse processo. Obviamente é um processo de descobertas de sabores diversos. BL - Apaixona, né? É um misto. Quando fui à Fundaj e vi as fotos que eles têm em acervo, eu comecei a chorar. Foi muito forte, em alguns momentos eu pensei “Meu Deus, eu poderia ter tirado essa mesma foto!”. Eu teria feito exatamente igual. E por muito tempo eu nunca tinha visto uma referência dele quando comecei a fotografar. Conhecia as fotos das festas de aniversário, da minha mãe pequenininha, mas não as da cidade, do centro, do Kiosque, das pessoas na rua. Quando eu fui para a Fundaj vi a magnitude do acervo dele. Foi ali que notei que precisava pesquisar o que não estava lá, os flagrantes e recortes domésticos que estavam em caixas na casa da minha tia e fazer alguma coisa com aquilo. ¹ Lima, Bruna; Ferrer Bruna Rafaella, Kiosque do Wilson [livro eletrônico]: Wilson Carneiro da Cunha: do instantâneo de rua aos registros caseiros, Recife, PE : Ed. das Autoras, 2023. Disponívem em < https://drive.google.com/file/d/1xZi4EYfm1Bn14-BEjibME7VNqiJbWSw0/view?pli=1 > ² José Mariano Carneiro da Cunha (PE -1850–1912) foi um político, abolicionista, jornalista, bacharel em direito, deputado federal e vereador da cidade do Recife. Foi deputado federal de Pernambuco (1878, 1882, 1885, 1890, 1894, 1897, 1912). Fundou o jornal A Província, com filosofia abolicionista. Ingressou na carreira política no Partido Liberal, ao lado de Afonso Olindense, João Barbalho Uchoa Cavalcanti, João Francisco Teixeira, João Ramos, José Maria de Albuquerque Melo, Luís Ferreira Maciel Pinheiro, com os quais traçou as bases do Movimento Abolicionista de Pernambuco. A partir de uma reunião marcada por João Ramos, junto a outros abolicionistas pernambucanos, fundou o Club Relâmpago, depois transformado em Club do Cupim, associação abolicionista que intensificou a campanha contra a escravidão em Pernambuco por meio de instrumentos fora da legalidade, como a organização de fugas e o transporte de cativos para fora da província. ³ Augusto Lucena (PB - 1916-1995) foi deputado estadual de Pernambuco em três legislaturas (1954, 1958, 1962); Vice-prefeito do Recife em 1963, assumindo a prefeitura em 1964, com a deposição do governador Miguel Arraes e do prefeito Pelópidas da Silveira pelo Golpe de Estado no Brasil em 1964; Vereador do Recife em duas legislaturas (1968, 1975); Deputado federal em duas legislaturas (1970, 1978); Prefeito do Recife - nomeado por indicação do governador de Pernambuco Eraldo Gueiros Leite (1971-1975). Polêmico e arrojado em alguns atos, teve contra si a mídia e boa parte da opinião pública, ao derrubar o que restava da Igreja dos Martírios, monumento tombado pelo Patrimônio Histórico, para abrir a continuação da Avenida Dantas Barreto, onde hoje existe o Camelódromo, construído em administração posterior à sua. ⁴ A Igreja do Bom Jesus dos Martírios foi uma igreja localizada no Recife. Tinha um valor artístico grande, com sua fachada em estilo rococó. Foi alvo de uma disputa entre a municipalidade (na pessoa do prefeito Augusto Lucena) e a intelectualidade recifense. O prefeito Augusto Lucena viu-se diante da Igreja dos Martírios, que lhe impedia o andamento das obras de urbanização do Centro do Recife. Até então a igrejinha não era tombada. Embora o IPHAN tenha iniciado o processo de seu tombamento da igreja, na tentativa de impedir sua demolição, Augusto Lucena solicitou ao Governo Federal seu destombamento. Enquanto alguns técnicos enviados pelo governo deslocavam-se ao Recife para avaliar a solicitação, o prefeito, em antecipação, conseguiu derrubar parte de sua fachada. O prefeito então conseguiu o destombamento da igreja, que foi demolida, dando lugar à Avenida Dantas Barreto. ⁵ A enchente de 17 de julho de 1975 começou em uma tarde de quinta-feira e terminou após dois dias. 80% do Recife foi coberto por água. Foram registradas cento e sete mortes.
- ARTISTA-TURISTA - REPRESENTAÇÃO, FRICÇÕES E VIOLÊNCIAS
Em conversa com a equipe editorial da Propágulo no lançamento do livro Cento e poucas notas introdutórias à Artista-turista, Luana Andrade aborda questões como o trânsito entre paisagens rurais e urbanas, sua situação enquanto imigrante em Portugal e como a ironia pode ser uma ferramenta para pensar criticamente sobre esses assuntos. O evento aconteceu no dia 5 de março de 2024 na Garrido Galeria. HEITOR MOREIRA - Luana, você é de Surubim e sua pesquisa gira em torno de Portugal. Como você vivencia esse trânsito? Como é realizar sua pesquisa em um país europeu e ter esse corpo que atravessa a Região Metropolitana do Recife e o Agreste pernambucano? LUANA ANDRADE - Muito obrigada por este convite, por esta noite, pelas pessoas que estão aqui. Nasci no Recife, mas me radiquei em Surubim, cidade do Agreste de Pernambuco. Cursei licenciatura em Artes Visuais na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e lá concluí meu mestrado, também em Artes Visuais. Em seguida, iniciei o doutorado em educação artística em Portugal. Minha pesquisa está muito relacionada ao deslocamento, à sensação de pertencimento, bem como às relações entre arte e território. E, para mim, especificamente, os territórios do interior, pois é dessa territorialidade que venho. Em Portugal, mantenho uma relação com uma cidade específica do interior, que é Belmonte (em Pernambuco, é com Surubim). São dois lugares distantes entre si, mas que compartilham esse afastamento geográfico de um grande centro urbano. São histórias e lutas que, em algum momento, se cruzam. HM - Como surgiu, então, a figura da Artista-Turista na sua pesquisa? LA - Ela é uma persona que criei e que tem me ajudado a enfrentar questionamentos na minha pesquisa. Quando decidi iniciar essa investigação, tinha a vontade de explorar alguma experiência estética específica desses lugares, dos interiores. Isso estava muito ligado, desde a minha trajetória anterior no mestrado, aos estudos da Internacional Situacionista, dos quais extraí muitas referências da tese de Bruna [Rafaella Ferrer]. Então, em Surubim, onde iniciei essa pesquisa, pensei sobre esse situacionismo, que é marcadamente eurocêntrico (embora exista também no registro de outras geografias), e como ele se relacionava com o lugar onde eu estava, no Agreste Setentrional pernambucano. Parecia que, no fundo, havia a ideia de que o acaso da cidade tinha uma importância, uma potência de acontecimento maior no meio do caos urbano em detrimento dos interiores — justamente por ser um caos, facilitando o surgimento de eventos inesperados. Comecei então a vislumbrar um movimento que fosse uma paródia à Internacional Situacionista, chamado Rural Situacionista . Recorro ao deboche como estratégia para enfrentar e lidar com situações. Ele também é um tipo de produção de conhecimento, digo isso a partir, inclusive, da entrevista de Caetano Costa realizada por biarritzzz para a Revista Propágulo 06 . A Rural Situacionista era, para mim, uma maneira de dar visibilidade à experiência estética de tudo isso que colocamos em um balaio e chamamos de “interior”, abordando os problemas de categorização e representação. LA - Entendi que essa questão não era um interesse apenas meu, mas também institucional e de muitos artistas ao meu redor que desejavam promover e participar de atividades no interior, como residências e projetos artísticos. Pesquisando sobre o formato das residências, encontrei um livro [ Rural Artists' Colonies in Europe, 1870-1910 , de Nina Lübbren] que conecta a origem delas às colônias rurais de artistas na Europa, que buscavam se afastar da urbanidade, indo para o campo e, na verdade, idealizando uma imagem desse lugar. No entanto, a própria presença desses artistas nesses lugares acabava por urbanizá-los, alterando aquela paisagem que eles próprios queriam representar, uma espécie de romantismo agrário, quase como uma paisagem bíblica, aquele paraíso que era o campo — que é, na verdade, um território de muitas lutas. Então existe um paradoxo nessas afirmações, que veem esse espaço como um lugar de ócio. Neste livro há relatos de que os artistas eram chamados de “turistas” pelos locais, de forma pejorativa, ou seja, como pessoas que estavam ali na superfície, e não necessariamente para se aprofundar naquela circunstância, o que era a intenção deles. Eu combinei essas duas identidades e saí por aí, usando o mesmo aparato de uma turista, mas tentando ver nesses lugares o que é comum, o que não seria o olhar de uma turista, mas de uma artista, tensionando essas duas identidades. Complementando a primeira pergunta, em Portugal não sou turista, sou imigrante. Então é uma maneira de trazer a ficção para esse lugar do posicionamento social também. ROD SOUZA LEÃO - No livro, você fala sobre essa representação turística dos lugares, chegando a se perguntar sobre o porquê dessa representação, da criação de experiências postiças. Qual a relação entre a sua pesquisa, a ideia de representação e as narrativas que se criam a partir do outro? LA - Vivo na cidade do Porto, um local que vem sendo muito gentrificado, especialmente pelo turismo. Existem grandes problemas de habitação e um dos temas das eleições deste ano, inclusive, é a especulação de que há mais Airbnbs e hotéis do que casas para as pessoas morarem. Achava interessante começarmos a pensar no turismo como algo que deve ser historicizado e problematizado, relacionando-o quiçá às grandes navegações, de onde vem o problema colonial que enfrentamos. Isso causa uma provocação, porque o turismo também é um motor econômico dos lugares. É como se você estivesse mexendo numa coisa que não pode ser alvo de muita crítica. LA - A primeira frase do livro é “Viajar para conhecer é uma falácia” e parte da reflexão de que, quando viajamos, temos a sensação de estarmos conhecendo um lugar. No entanto, passamos por tantos lugares que nunca vamos saber verdadeiramente que lugares são esses. O que é que a gente tem acesso deles? Que representação é essa que é construída e para quê? Minha primeira visita como artista-turista foi em 2022 a Monsanto, uma vila eleita, durante o Estado Novo [regime ditatorial], por um concurso promovido à época pela Secretaria Portuguesa Nacional de Propaganda, como a aldeia mais portuguesa do país. Foi muito interessante para minha pesquisa saber disso, porque Portugal teve a sua imagem de estado-nação centrada na aldeia, na vida camponesa idealizada. Ainda hoje é possível comprar nessa vila o fac-símile do Guia de Monsanto, que foi produzido em 1938. Nesta minha visita, comecei a me perguntar: como representar um lugar? Por que essa representação da “aldeia mais portuguesa de Portugal” ainda vigora nos dias de hoje? É disso que Monsanto sobrevive economicamente, desse tipo de turismo. Vai se criando umas verdades a partir dos regimes de representação, e acho que é saudável mexer nisso. GUILHERME MORAES - Existe um tipo de produção de escrita acadêmica que é específica desse campo, como a escrita de artigos científicos, dissertações e teses. Como foi fazer com que sua escrita migrasse para essas notas? Uma vez que o público-alvo da sua escrita deixa de ser exclusivamente a comunidade acadêmica e passa a ser o público em geral interessado em arte a partir desse livro, como é pensar essa outra finalidade da sua escrita? LA - São públicos ainda muito distintos. Infelizmente, a academia é um lugar que produz um saber muito centralizado, de difícil acesso. Não que todas essas teses e dissertações maravilhosas não estejam lá nos repositórios, mas o debate acaba se fechando, cercado por um institucionalismo. Fazer o livro pra mim foi uma experiência interessante, porque esse texto surgiu da primeira vez que fui falar sobre a artista-turista numa aula. Sabe quando a gente faz uma lista daquilo que não pode esquecer de dizer? Eram 37 notas. E eu levei isso para a disciplina de escrita científica. Quando li as notas para o grupo, achamos que aquilo não era um conjunto de simples anotações que pretendiam se tornar outro tipo de texto depois. Nessa escrita fui dando vez a tudo que estava orbitando a artista-turista. São muitos assuntos, mas todos eles dizem respeito à relação da arte com os territórios e o deslocamento. É importante tentar criar esse espaço também dentro da academia para tornar o debate mais aberto. GM - Nós passamos pela mesma licenciatura e pela mesma linha de pesquisa de mestrado. Sei que nossa formação e nossa maneira de produzir conhecimento é muito afeita à dúvida e à incerteza. Parece-me que esta escrita performa de maneira diferente desse dado. No livro, existem muito menos interrogações do que pontos finais. São afirmações contundentes, dentre elas: “Viajantes são profundos desconhecedores”, “Nem o novo nem o outro escapam à exotização” e “A residência artística tem sido usada enquanto formato apaziguador de tensões que se apresentam em relação entre artista e território”. Como se dá essa mudança de tom? LA - Meus anos de formação na universidade foram imersos por uma lógica freiriana. Gosto desse exercício, que é o de sempre produzir perguntas, estas que geram sempre outras e mais perguntas. Não deixei pra lá esse exercício, mas o livro foi um momento de performar muitas afirmações, uma série de notas, de aforismos. A afirmação tem essa dureza. Além disso, quando a gente faz uma lista pra se lembrar, também constam ali coisas que foram esquecidas no caminho. Logo, existem perguntas nas entrelinhas. Há questionamentos entre a nota número 1 e a número 2 e assim em diante. GM - Vamos abrir a roda de conversa e queria saber se alguém tem alguma pergunta? Visitante não identificada - Você falou sobre Surubim e sobre Porto, mas passou sobre a sua relação com Belmonte. Queria saber como se dá sua relação com essa cidade. LA - Tenho um irmão que trabalha com tecnologia, ele é desenvolvedor e também mora em Portugal, mas foi parar em Belmonte devido a um incentivo nacional à interiorização. O país tem incentivado que as pessoas ocupem esses espaços distantes de grandes centros urbanos, porque há um problema gigante em relação ao despovoamento dessas áreas. Passei a visitá-lo e a conhecer a cidade de uma forma menos restrita, ao invés de estar ali necessariamente para pesquisar. Mesmo sendo uma cidade interessante para essa investigação, não fui focada nisso a princípio, reconheço que a academia tem essa tendência de consumo, essa coisa predatória. Com o tempo e com as relações que fui criando lá, passou a fazer sentido que aquele fosse o meu território de ação. A título de curiosidade, uma curiosidade fulcral: Belmonte é o lugar onde Pedro Álvares Cabral nasceu. ANA GABRIELA AIRES - Estava bem curiosa desde o título da publicação. Comentei agora há pouco com Rod e Guilherme que também tenho uma pesquisa nesse sentido de imigração. Eu sou mais da literatura, da escrita, então fiquei agora ouvindo vocês, me perguntando justamente sobre essa fronteira da escrita acadêmica com a escrita mais artística, digamos assim. No livro, você lança notas sobre essa performance turística da superficialidade. Fiquei curiosa para saber como é cruzar a fronteira da escrita acadêmica e escrever enquanto artista-turista. LA - Tenho uma preocupação para que a maneira como eu me expresso na academia não seja contrária àquilo que eu estou lutando na academia também. Até então, não tenho me deparado com nenhuma barreira nesse sentido. Pelo contrário, tenho encontrado pessoas que me estimulam a isso. A escrita é um processo investigativo também, ela própria já performa. Um doutorado são quatro anos de pesquisa e a escrita vai ser só o registro de algo que aconteceu? Aconteceu tanta coisa e agora como é que eu vou relatar, falar sobre isso? Eu acho que isso é uma maneira de colocar a escrita num lugar muito pequeno. A escrita, na verdade, é um lugar de performance, de luta também, dessas coisas que a gente defende tanto. Eu tenho essa perspectiva até então. Eu até pensei, quando estava pronto esse texto, olhando para ele várias vezes e pensando na minha pesquisa e no que um dia vai ser a minha tese. Ainda estou no meio desse caminho. Se eu pegar esse texto e for desdobrar, há muitas coisas entre uma nota e outra. É preciso policiar menos a escrita, deixar que ela tenha esse lugar mais potente de ser também uma maneira de pensar. GM - Queria agradecer sobretudo a Luana, que acompanhamos pela Propágulo desde "A Beleza da Lagoa É Sempre Alguém". A gente te admira muito e é uma alegria sem tamanho iniciar essa série de livrinhos contigo. Para nós, você é uma referência de inteligência e leveza. É importante pontuar que esse livro não foi feito com fomento público, mas acontece devido aos nossos assinantes e patrocinadores, especialmente a Galeria Marco Zero e a Galeria Garrido, que abriram espaço enquanto espaço de arte que acredita em nosso trabalho. É um livro pequeno, mas que resulta de um esforço hercúleo e ter a casa cheia para seu lançamento é algo que não tem preço para nós. Agradecemos a presença de todos. LUANA - Muito obrigada pelo cuidado. Foi um trabalho muito cuidadoso mesmo. Estou muito feliz de estar aqui e de ver muita gente que eu não via há tanto tempo. Obrigada, obrigada de verdade. É um trabalho muito bonito que a Propágulo vem fazendo. Fotos do evento por Danilo Galvão O Livro "Cento e poucas notas introdutórias à Artista-Turista" está disponível em nossa loja online. Saiba mais clicando aqui .
- SINFONIA DO PRESENTE
Rayana Rayo (Recife - PE, 1989) vem descobrindo novas vias de autoconhecimento: em suas pinturas, a abstração ganha contornos de autorretrato, desabrochando em paisagens enigmáticas, ambíguas, incertas por meio das quais a artista passa a aprender sobre si a partir da solitude. A tecelagem “Desencontros”, anterior à produção das telas também contidas nesta mostra, acontece enquanto representação esquemática — uma linha ondulada, contínua, e outra angulada, breve —, mas também confessional na síntese de elementos envolvidos, podendo ser percebida enquanto cronologia autobiográfica da artista. Por ter sido produzido em tapeçaria, o trabalho ganha um entendimento de que houve, no decurso de sua gênese, uma fatia significativa de tempo que foi vivenciada ao longo de sua concretização. A percepção do tempo empregado por Rayana Rayo na tecelagem, obra de maior rigor aqui apresentado, também se metamorfoseia em suas pinturas. Dilatando-se de telas confeccionadas sem meta precisa, frutos de um ritmo pautado no encontro diário consigo em ateliê, a artista elabora sobre os eventos significativos de sua vida ao passo que lida com o material de seu trabalho. Dos ladrilhos hidráulicos de sua casa, único elemento retratado em suas telas que parte de uma referência visual factual, abrem-se poros de onde emerge uma paisagem ora fluida, ora sólida. Fazendo-se dentro da cotidianidade da artista, não há um rigor cromático premeditado, não há rascunho nesse tipo de trabalho: as pinturas de Rayana Rayo são produtos de decisões tomadas no presente, e desta empiria brotam, jorram, irrompem e borbulham as partículas as quais compõem seus corpos. É pelo arranjo destas que é composto um lirismo que vem dos inúmeros contrapontos de suas imagens. Formados por órgãos dotados de coerências internas e interações misteriosas, as pinturas “Autorretrato I” e “Autorretrato II” trazem interações alquímicas entre sólidos animalescos, maquínicos, microscópicos ou interplanetários. Os órgãos em sinfonia presentes no trabalho de Rayana Rayo podem ser percebidos pelo que essencialmente não são, isoladamente, através da comparação destes com os outros elementos que os ladeiam. Se um se mostra ferino, é também pelo fato de que outro, em algum lugar na composição proposta, será evidenciado pela sugestão de sua maciez. Se um ganha destaque através da lisura, encontrará em sua antípoda uma profusão de irregularidades e assimetrias. Mas onde estão evidenciados os contornos de autorretrato na obra da artista? Como caracterizar sua dimensão de aprendizado? Esse mistério não está necessariamente codificado nas figuras produzidas por sua criadora, mas na lembrança quase onírica de quando estava propondo cada uma delas em suas paisagens camaleônicas.
- “PIXAR É HUMANO": ESCRITAS INSURGENTES NA CIDADE
Fui criado em um bairro de grande tradição na pixação. É relatado que desde o final da década de 80 e início da década de 90 existiam pixadores em Beberibe e nos arredores da Zona Norte do Recife (PE). Cresci onde o pixo era parte do cenário das avenidas, ruas, becos e vielas. A pixação surgiu, pelas bandas de cá, junto com o fenômeno das galeras periféricas — grupos de jovens que se uniam em torno de uma sigla, na maioria das vezes, representando uma abreviação dos seus bairros. Ocupavam os bailes funks da RMR. Os pixadores eram um tipo de propagadores dessas siglas pela cidade. No bairro de Beberibe, o comando mais expressivo e antigo é a ATM (Atacante Terroristas de Muros), em atuação até hoje. Não sou da primeira geração de pixadores, longe disso, comecei bem depois que os primeiros registros de pixação apareceram em Recife. Nesse ambiente suburbano, tive meu contato inicial admirando as escritas nos muros. Depois, colocando os primeiros nomes nas paredes. Com certeza essa foi a primeira experiência com o fazer artístico, de maneira mais consciente, mesmo ainda, nessa época, não me entendendo como artista. Com o passar do tempo, os limites territoriais do bairro foram ficando restritos, outros bairros foram fazendo parte das caminhadas. O pixo me fez conhecer a cidade e suas regiões. Ocupando cada vez mais territórios, da periferia até o centro da cidade, local hostil aos jovens periféricos. A vontade de deixar o pixo em mais lugares expandiu os horizontes fazendo com que a cidade negada cotidianamente fosse ocupada. E mais, transformou caminhos que eram apenas passagem em paisagem. “PAREDE BRANCA, POVO MUDO” A pixação exercita o olhar e faz enxergar a cidade de uma outra maneira. Onde para alguns é apenas cinza e concreto, para os pixadores viram locais com possibilidade de intervenção, mudando, assim, nossa identificação com esses territórios. Rompendo nossos limites cartográficos impostos socialmente. Ressignificando a urbe, suas esquinas, encruzilhadas e avenidas. Rompendo as amarras em uma atitude intrusiva, de penetrar os espaços proibidos pela sacra lei da propriedade privada. As paredes riscadas são apenas parte de algo bem maior que existe por trás, no silêncio da ilegalidade imposta pelo Estado. Engana-se quem acha que a pixação começa e termina no ato de “vandalizar” muros. Ela existe em um amplo movimento, artérias e circuitos, que promove espaços, encontros e relações de irmandade e, também, de competitividade. Esses espaços de atuação geram identidade e representatividade. E, nesse processo, cada pixador se olha enquanto parte de algo maior. Uma identificação pelo que faz. E, levando em conta toda a alienação gerida pelo capitalismo, identificar-se como parte de algo é uma das razões do pixo, que, mesmo com toda repressão do Estado, não foi banido ou apagado do cenário urbano. Lembro que sempre um amigo falava: — “quando estou pixando é o único momento em que me identifico com o que faço”. Essa frase, por si só, revela o caráter desalienador do pixo, tanto no que diz respeito ao processo artístico, quanto ao processo de ocupação do espaço público, como meio de se reconhecer e se manter vivo na paisagem desumanizadora das metrópoles. É lamentável que quando se levanta alguma discussão sobre pixação e arte, na maioria das vezes, os discursos se desdobram em um questionamento que, por trás da problematização, esconde aspectos conservadores sobre concepção artística e de aspectos sociais. E esse questionamento sempre gira em torno de ser ou não uma expressão artística. Essa problematização em torno de uma questão não deveria mais hegemonizar as discussões sobre a pixação no Brasil, já que essa expressão atua no ambiente urbano desde a década de 80, tempo histórico sufi ciente para se ter aprofundado estudos e análises sobre a temática. Também para escutar e acompanhar o desenvolvimento dessa expressão da arte urbana no cenário nacional. É possível, levando em conta as especificidades de cada local, traçar escolas, estilos e traços característicos de um estado ou tempo histórico. Cada artista, dentro do seu período de atuação, desenvolve sua técnica, criando suas letras, que mostram seu caráter criativo e suas influências e transformações ao longo do tempo. O que, por muitos, é apontado como sujeira e rabiscos desordenados é, na verdade, um grande lastro de saberes e estilos desenvolvidos a partir de influências estéticas, desenvolvimento técnico, estudo individual e coletivo para chegar a um formato artístico para ser riscado nos muros. Só que, diferente de outras expressões e linguagens artísticas, o pixo surge como uma ação de transgressão e ruptura ao processo histórico de silenciamento, de negação dos espaços públicos e dos espaços privados e de afirmação artística e territorial de populações submetidas à marginalidade política, social e econômica. “O VERDADEIRO BANDIDO NÃO FOI PRA CADEIA. TÁ COMPRANDO AMAZÔNIA E DIZIMANDO ALDEIA” Existe uma escassez de materiais e registros históricos produzidos pelos próprios pixadores. Essa escassez se aprofunda quando se procuram materiais das décadas passadas, onde o acesso a material audiovisual era algo difícil, dificuldades essas impostas pelos limites econômicos e pela falta de políticas públicas de democratização da produção visual e audiovisual. O material que se tem ou é fruto de recortes de matérias de jornais da grande imprensa, com um linha editorial quase única de apoio à criminalização e à perseguição ao pixo, ou são estudos e documentários realizados por pesquisadores, que muitas vezes reproduzem, em algum nível, o discurso do sistema opressor. Existiram várias iniciativas de organização de zines ou vídeos produzidos pelo próprio segmento artístico, e esses materiais são de grande riqueza documental, mas, pelo grau de estrutura, se encontram dispersos e pulverizados. Muito do que resistiu, enquanto memória, foi fruto da cultura oral, onde uma geração passa para outras suas experiências, técnicas e histórias. Todo esse material discursivo circulando nos encontros, nos rolês… Houve uma melhoria no processo de documentação depois da massificação da internet e do fenômeno das redes sociais. Sabemos que parte da luta pela sobrevivência de uma cultura é sua luta pelo direito à memória. Apagar os muros com tinta, perseguir criminalmente e ignorar a existência da pixação é tudo parte do mesmo pacote de dominação e preservação das narrativas elitistas e higienizadoras para silenciar processos de transgressão e de enfrentamento com a historiografia “oficial”. Diante disso, não é de se admirar que, durante toda existência da pixação, existiram ações judiciais para sua criminalização. Até 2008, o pixo era enquadrado no Artigo 63 do código penal como crime de depredação ao patrimônio. No mesmo ano, é aprovada no Congresso Nacional a Lei 9605 (lei dos crimes ambientais), que traz no Artigo 65 a tipificação do pixo como crime contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural. Além disso, ainda tem as leis e projetos de lei municipais e estaduais que fazem coro com a Lei 9605 e que, em alguns casos, chegam a ser mais duras. Todo esse aparato judicial esconde, por trás de um debate contra o pixo e a higienização das cidades, uma narrativa de perseguição às práticas culturais provenientes das periferias urbanas e da proteção à propriedade privada, buscando o esmagamento e o desaparecimento dos seus artistas, sendo a motivação delimitada por questão de classe e raça. São os pixadores, jovens das periferias urbanas, que sofrem perseguição judicial e, no silêncio da madrugada, violência policial, tortura psicológica e até mesmo, em alguns casos, assassinatos. Todos os pixadores carregam o peso de histórias e relatos dessas violências por parte da força policial e do poder judiciário. Sabemos que na cidade, no geral, dois projetos estão sempre em disputa. De um lado, privatização dos espaços públicos, gentrificação, elitização e criminalização da pobreza, da arte urbana e dos movimentos sociais. Processo este encabeçado pelo capital especulativo e grandes construtoras e apoiado por muitos governos e suas forças de repressão armada, que se beneficiam das gordas verbas e financiamentos de campanhas eleitorais. De outro lado, um projeto de cidade popular, com democratização do acesso e ocupação de seus espaços; garantia do direito pleno à moradia, trabalho e lazer; fomento e incentivo ao diálogo artístico urbano e preservação do patrimônio arquitetônico e histórico. Dentro desse espaço de fissuras sociais, a garantia do direito de expressão artística é uma luta importante para construção do projeto de uma cidade popular e inclusiva. “A PIXAÇÃO É A ARTE QUE DISCRIMINARAM” O processo de apagamento e invisibilização do pixo se dá, também, em âmbitos relacionados à arte. Um aspecto disso são as narrativas nos manuais e livros didáticos do ensino da arte nas escolas e universidades. Quando muito, esses materiais falam é de grafite e de outras expressões da arte urbana. E reforçam uma falsa dicotomia entre grafite/arte urbana vs pixação, se apropriando de um discurso que é muito propagado pelo estado e, infelizmente, em alguns espaços artísticos, coloca as outras artes urbanas como uma alternativa higienizada e positiva, apontando a pixação como algo sujo e criminoso. Quando, na verdade, a origem do grafite remete aos mesmos princípios do pixo, onde, na rua, os artistas intervêm no cenário urbano de forma não autorizada pelo estado e pelos proprietários dos imóveis, deixando suas escritas como forma de manifesto e afirmação artística. Outra postura bastante negativa é dos espaços institucionalizados de arte, incluindo as galerias, as mostras, as revistas especializadas, que, ao não incorporar a pixação como uma expressão artística contemporânea, agem reproduzindo uma das lógicas do discurso e práticas conservadoras, que apaga qualquer possibilidade de discussão sobre a temática. Alguns espaços e galerias, principalmente as relacionadas a arte urbana, agem com uma outra postura. Como exemplo, temos a exposição em homenagem ao pixador DI (em memória), sendo esse um dos principais pixadores de São Paulo da década de 90 e um dos precursores da modalidade de pixos nos prédios. A exposição ocorreu em 2016, na A7MA Galeria, em São Paulo. Essas iniciativas são muito importantes, diante do peso e da presença que a pixação tem no cenário contemporâneo nacional e do necessário respeito que ela merece. Contudo, longe de achar que o pixo precisa da legitimação do circuito de arte institucional e mercadológico para existir, pelo contrário. Talvez sua caminhada na contramão de todas essas institucionalidades seja parte da gênese do seu espírito libertário e do seu poder transgressor, justamente por conta de sua existência estar intrinsecamente ligada ao caráter “ilegal” da intervenção artística. Porém, uma coisa não precisa negar a outra, elas podem coexistir de maneira positiva e, ao incorporar nas suas programações, esses espaços, veículos e instituições ajudariam a desconstruir a propaganda ideológica criminalizante que recai sobre a pixação. No pixo existe uma pluralidade de vozes e de visões sobre as escritas urbanas e elas todas precisam ser escutadas e visibilizadas. Esse texto é um relato pessoal de algumas experiências, vivências e opiniões que tenho sobre a pixação dentro do contexto social e artístico. Tenho noção da importância do pixo na minha formação artística e humana, quanto ela foi decisiva na compreensão da arte em que eu acredito e que me impulsionou a transitar por outras expressões, como a fotografia, a colagem, o lambe. Mas sempre entendendo a rua como um espaço de ocupação, resistência e intervenção. Pelo direito ao espaço público e à democratização da arte. “Pixar é humano”, já falava DI, e é parte da necessidade de se expressar em meio ao ruidoso caos urbano e sensibilizar nossas ações, desobediências e transgressões na urbe. CITAÇÕES: * A frase “Pixar é Humano” é de autoria do artista DI (SP), citado no texto; ** “O verdadeiro bandido não foi pra cadeia. Tá comprando amazônia, e dizimando aldeia” é um trecho da música Pixadores II, de autoria de Nocivo Shomon; *** “Parede branca, povo mudo” é uma frase de autoria desconhecida pixada diversas vezes nas paredes de diversos lugares do Brasil e do mundo; **** “Pixação é a arte que discriminaram” é trecho da música “Pixar é humano”, de Grilo 13.
- PROPÁGULO INDICA - CURADORIA
Nesta primeira publicação do quadro 'Propágulo Indica', uma iniciativa exclusiva para o Clube de Assinantes que será lançada mensalmente em nosso editorial, propomos algumas reflexões e indicações acerca dessa temática com grande potencial de se estender excessivamente — os processos curatoriais.
- MITSY QUEIROZ - PRELÚDIOS DA IMAGEM #01
Artista visual, fotógrafo, pesquisador e arte/educador, Mitsy Queiroz (Recife - PE, 1988) conversa com Guilherme Moraes, curador da Propágulo, sobre sua poética e seus processos de criação a partir da linguagem fotográfica. Quais são as aproximações possíveis entre fotografia e corpo? O que seria desviar dentro do que está estabelecido dentro das normas hegemônicas desses dois universos? Como jogar com o controle e o inesperado dentro da experimentação fotográfica? E se a imagem produzida não corresponder às expectativas canônicas do que deve vir a ser uma boa fotografia? Mitsy Queiroz tensiona a falha enquanto joga com os recursos analógicos e digitais da fotografia que produz. Prelúdios da Imagem é uma série de vídeos realizada pela Propágulo com o objetivo de expandir debates e conversas com diferentes agentes da cadeia artística. A primeira temporada conta com 3 episódios, nos quais participam Mitsy Queiroz, Aoruaura e Clara Moreira.
- O TEMPO DO JARDIM É O TEMPO DO OUTRO
Vencedor da Ciranda Fotográfica no 9º Pequeno Encontro da Fotografia, o projeto (EM)Transição – Pesquisa cultural em fotografia e agroecologia" estabelece como mote os valores coletivos e a defesa da autossustentabilidade social . '(EM)TRANSIÇÃO' - Agroecologistas Antônio e Célia junto ao biodigestor em Bonito (PE), antotipia de casca de cebolas roxa, maio de 2023 Descortinar o processo de construção de um projeto fotográfico é poder vislumbrar, em suas nuances políticas e estéticas, os encontros transformadores e pontos de inflexão que traçaram o seu desenvolvimento. Contrário ao usual caminho seguido por trabalhos vencedores em competições, nos quais a autoria é atribuída a uma mente criadora, ao ganhar a premiação da Ciranda Fotográfica no 9º Pequeno Encontro da Fotografia, o projeto (EM)Transição – Pesquisa cultural em fotografia e agroecologia reforçou a fotografia enquanto uma experimentação anti hierárquica e sensível. Intitulado Ação coletiva e agroecologia: os caminhos da mobilização social para a construção de uma política pública municipal em Bonito/PE , trabalho da tese de doutorado de Paulo José de Santana, não só analisou o processo de construção da política pública da cidade pernambucana, a partir das estratégias de transição agroecológica e da ação coletiva, como também “ acendeu a fagulha inicial do projeto fotográfico”, explica o pesquisador e participante do (EM)Transição . Por meio de um diálogo robusto de reflexões, atravessadas ocasionalmente por funções fáticas da linguagem, como só uma sessão virtual no Meet pode proporcionar, a entrevista da Propágulo com alguns dos colaboradores do projeto vencedor da Ciranda Fotográfica ¹ — a agricultora agroecológica Fábia Lima, a produtora Lara Bione, os fotógrafos Danilo Galvão e Roberta Guimarães, e o pesquisador agroecológico Paulo José de Santana — expõe a potência existente na feitura de um projeto composto por muitas mãos. No Agreste pernambucano, uma sub-região de modificação entre a Zona da Mata e o Sertão do Nordeste, está situado o município de Bonito. Foi neste território que já compreende em seu firmamento as mutabilidades geográficas onde o projeto (EM)Transição encontrou solo fértil para o seu desenvolvimento. ¹ Realizada pela primeira vez nesta 9ª edição do Pequeno Encontro da Fotografia, a Ciranda Fotográfica contempla obras em formatos diversos, tais como ensaios e fotolivros. A ideia é que pessoas e coletivos apresentem suas obras, selecionadas por meio de convocatória, para a curadoria do festival em sessões de pitching que podem durar até 15 minutos. (EM)TRANSIÇÃO - Antotipia de extrato de cascas de cebola dourada O projeto começou a ser construído a partir do primeiro encontro do grupo, que aconteceu em 8 de abril de 2021. À época, os colaboradores Danilo Galvão, Lara Bione e Fábia Lima faziam parte da formação em processos de mobilização e acompanhamento na agricultura familiar e agroecológica, ministrada por Paulo Santana. Juntos, em uma roda de conversa, entenderam que o melhor caminho para a apresentação de um projeto que discutisse a experiência de transição agroecológica, a nível de uma cidade, seria pela fotografia. Processos fotográficos alternativos Fotos da esquerda para direita: Antotipia com Flor de Bougainville, antotipia com extrato de caiuia e fitotipia com a agroecologista Joelma Elegendo a mudança como mote do projeto, sendo o mesmo entrecortado constantemente por estados de transição, o fotógrafo Danilo Galvão sugeriu que a antotipia e a fitotipia, processos fotográficos que envolvem a utilização de pigmentos vegetais como material fotossensível, guiassem este trabalho artístico. Assim, encontrou no trabalho de Roberta Guimarães pontos em comum com o desejo que lhe movia. “ Eu nunca tinha trabalhado com a técnica, mas acredito que ela, além de aproximar a botânica da fotografia, também permite um processo de contemplação da imagem enquanto resgate de identidade territorial. Me lembrei então de uma apresentação de Roberta sobre o projeto Árvore da Palavra, na 7ª edição do Pequeno Encontro da Fotografia, e a convidei para participar da iniciativa conosco”, relembra. Efêmera e imprevisível, a antotipia é uma técnica à qual a fotógrafa Roberta Guimarães já estava familiarizada, mas que, ao longo do desenvolvimento do projeto, foi se aprofundando ainda mais nas suas nuances imprevisíveis. “ Enquanto estávamos no sítio de Fábia, experimentando com a técnica, íamos notando as diferenças no processo de impressão — o urucum quando está mais fresco, por exemplo, funciona de uma forma. Quando está velho, já não fica tão bom. A gente descobriu a caiuia, uma frutinha dada aos peixes da região, que traz uma cor bem interessante, mesmo não sendo um estrato tão conhecido. São processos de transição, não se sabe o que vai acontecer com a obra”. “Estamos muito acostumados com os processos instantâneos e registros imediatos que as redes sociais nos possibilitam, tudo já está pronto. Em contraste, existe ali na feitura da antotipia e fitotipia um processo de contemplação, de calmaria.” (EM)Transição Imersão agroecológica Parte da Associação Vida Agroecológica, Fábia Lima conta que foi em uma das reuniões mensais dos agricultores, situadas no Mercado da Vida, um estabelecimento organizado por processos autogestionários de mais de vinte famílias agricultoras do município, que a equipe de (EM)Transição veio apresentar o projeto aos trabalhadores e contemplá-los com a participação na iniciativa. “ Por votação, eu fui escolhida para ser a articuladora local”, conta a agricultora. A casa de Fábia Lima foi um dos onze sítios de agricultores da Associação visitados para os momentos de imersão no projeto. “ Os participantes do projeto estavam naquele espaço para fazer as pesquisas das plantas, medicinais e nativas, que poderiam ser usadas no processo de antotipia e fitotipia. Além dessas imersões, entre março e junho deste ano, sempre às sextas, que é o dia usual da feira, tinham oficinas lá no Mercado da Vida onde os agricultores podiam participar, mas dessa vez para aprender a técnica”. O coletivo e a apropriação da linguagem A experiência fez confluir a vivência coletiva dos agricultores com a apropriação da linguagem fotográfica ecológica. Marcado por um exercício de escuta e sensibilidade, o processo também reforçou a contribuição da imagem para a construção da identidade local, como bem relembra Danilo ao contar a história de Seu Luís, um dos agricultores da Associação. “Montamos um pequeno estúdio no Mercado para poder fotografar as atividades e os participantes. Lembro que ele, com os seus 70 anos de idade, dizia que ‘era amostrado, porque ninguém é invisível e todo mundo já nasceu pra ser visto’. Esse entendimento, mesmo que simples, me marcou muito e nos acompanhou ao longo do projeto. Estamos ajudando a nós mesmos a construir uma identidade, uma imagem sobre quem somos a partir desses registros”. (EM)Transição - antotipia com extrato de urucum Para Paulo, a residência conseguiu, ao se apropriar das técnicas fotográficas alternativas, encontrar formatos coerentes com a agroecologia, não só para dar visibilidade a essa temática, mas para permitir uma troca acessível com os participantes. “A beleza do projeto está na facilidade da réplica, já que não é um processo que requer muito em termos financeiros. Isso já contribui para democratizar a experiência e não distanciar as pessoas do processo”. (EM)Transição – Pesquisa cultural em fotografia e agroecologia não só se debruça sobre a paisagem, compreendendo de que forma esse território se modifica a partir da ativação do sujeito, como também convoca esse sujeito, seja um agricultor no campo, que implementa diariamente as ecotecnologias sociais, ou fotógrafos vencedores em premiações, a pensar a imagem para além de um meio de registro, comunicação e criação, mas como espaço de salvaguarda da memória ambiental.
- CLARA MOREIRA - PRELÚDIOS DA IMAGEM #03
Clara Moreira (Recife, PE, 1984), artista que utiliza o desenho como escrita poética e artesania do corpo, conversa com Guilherme Moraes, curador da Propágulo, sobre suas últimas trajetórias e produções artísticas. De que maneira o desenho está inscrito em seu corpo? Quais gramáticas possíveis de desdobram de uma poética focada nesse gesto pictórico? O processo de Clara Moreira acontece enquanto contínuo exercício de aproximação entre corpo e desenho, e do arquivamento do gesto performático através desta linguagem. O resultado é um ponto de encontro peculiar entre o onírico e a própria fisicalidade dos materiais que com ela interagem. Prelúdios da Imagem é uma série de vídeos realizada pela Propágulo com o objetivo de expandir debates e conversas com diferentes agentes da cadeia artística. A primeira temporada conta com 3 episódios, nos quais participam Mitsy Queiroz, aoruaura e Clara Moreira. Este projeto foi incentivado pelo Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura - FUNCULTURA, da FUNDARPE - Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado de Pernambuco.