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  • EM DEFESA DA ARTE CEARENSE

    "A arte é criação de mundos. Registros do cotidiano. Paisagens. Retratos. Acontecimentos históricos. Representações da realidade social, afetiva e ancestral. Expressões da subjetividade. Realidades abstratas, materiais, imateriais, concretas, conceituais, sensíveis e impossíveis. Os mundos da arte nos ensinam que existem outras realidades para além daquela que estávamos acostumades a consumir através de uma ótica euroreferenciada e higienizada, e nos convidam a vivenciar outras experiências possíveis construídas por pessoas distintas em toda a pluralidade e diversidade existente nas dimensões territoriais deste país. A exposição “Se arar”, em cartaz na Pinacoteca do Ceará, busca apresentar a arte cearense em sua multiplicidade ética, étnica, estética e política. Enquanto uma exposição coletiva, ela nos mostra que mundos tão diferentes podem conviver juntos e, assim, nos inspira a construir uma democracia baseada na diferença e nas políticas de vizinhança sensível. Construindo um ecossistema onde corpos e cosmovisões singulares se afetam e confluem para um universo plural, no qual a hierarquização e a monocultura do saber já não possuem espaço. Por isso, participam artistas de diferentes gerações, territórios e corpos que juntes constituem uma comunidade de obras e existências que percorrem todos os afluentes dos territórios cearenses. É importante destacar que os recentes ataques às obras da exposição “Se arar” estão sendo destinados a obras muito específicas, aquelas produzidas por artistas negres, mulheres e LGBT+, grupos sociais historicamente minorizados, saqueados e esvaziados de sua complexidade de elaboração artística, cultural, filosófica, linguística e espiritual, numa sociedade erguida sob o padrão de vida hegemônico que quer eliminar tudo aquilo que não for reflexo do seu espelho esbranquiçado. Existem outros nomes para esses ataques: retrocesso, preconceito e racismo estético. A curadoria da exposição “Se arar” reivindica o direito à imaginação e defende que toda obra em sua construção poético/conceitual, todas as identidades e a comunidade da arte cearense, bem como o público visitante, possam conviver na diferença, sem exclusão e sem esvaziamento dos debates políticos suscitados por todas as pessoas que trabalham com arte, curadoria, mediação, pesquisa, educação e demais presenças fundamentais que trabalham diariamente para que o acesso e o entendimento sobre arte, poéticas, processos e procedimentos artísticos sejam cada vez mais acessíveis e inclusivos. Essa foi e continua sendo a força motriz para a criação dessa exposição, que é sobretudo um grande ajuntamento da potência e preciosidade da arte brasileira, e não apenas cearense. Nos solidarizamos a todes artistas que compõem a exposição e que tiveram as suas obras atacadas, descontextualizadas e os seus direitos morais, intelectuais e imagéticos violados. A arte também pode causar estranhamento em quem a experimenta, e esse sentimento pode ser o germe de um novo mundo nascendo. Se arar, o que dá?" 9 de fevereiro de 2024 Um dia quente, Ceará Adriana Botelho, Cecília Bedê, Herbert Rolim, Lucas Dilacerda e Maria Macêdo Curadoria da exposição “Se arar”

  • PISTAS DE EPIFANIAS

    Por meio de um sincretismo que percorre desde a sua expressão como grafiteiro, seguindo até a presença da sua ancestralidade, que também se reverte em pintura, a linguagem artística de Bozó Bacamarte apresenta narrativas populares do Nordeste, através de representações gráficas inspiradas nas técnicas de xilogravura. A produção visual do pernambucano é discutida em "Pistas de Epifanias", texto publicado na exposição Seis Paisagens na Galeria Marco Zero, com curadoria de Guilherme Moraes, e agora disponível no editorial da Propágulo.  A chave do caminho e os sete pontos firmados, 2023 Acrílica sobre tela 120 x 100 cm I “Oh lelê dona Chica…” entoava em alto e bom som o palhaço de perna-de-pau. “Mexe a canjica!”, respondia o grupo de crianças que o seguiam, saltitantes, pela rua. Uma delas era Bozó Bacamarte (Recife - PE, 1988). “Hoje tem espetáculo?”, perguntava o homem cambaleante, anunciando a chegada do circo que se armava no terreno próximo ao cemitério. “Tem, sim, senhor!” Gritavam todos, eufóricos, naquele ano de 1994.  Carnaval, Acrílica sobre Eucatex, 2023 II Certa vez, Bozó acompanhou seu pai a uma visita a Tia Cecília, parenta da família. Recorda-se do fascínio que sentiu ao observar, em sua mesa, representações de entidades distintas das que costumava encontrar em um universo católico, ao qual era, até então, mais familiarizado. Enquanto fitava figuras mais irreverentes e coloridas do que as que já conhecia, escutava, ao longe, o som de alguma cantiga na voz de Cecília ritmada por um maracá. Essas imagens e sons ficariam gravados em sua memória, assim como o cheiro de fumo queimado há pouco no cachimbo de sua tia “espírita”.  Galo de Demanda, 2022, Acrílica sobre tela, 70 x 50 cm III Ainda é possível ver alguns dos primeiros grafites e pixos monocromáticos produzidos por Bozó nos muros que recortam Recife e Olinda. Características por aludirem ao entalhe farpado da madeira, próprios da xilogravura, tais propostas já delineavam uma série de interesses que viriam a ser burilados ao longo da produção do artista. Anos depois, a tela se somaria a uma prática de produção imagética que sempre fora, afirma Bacamarte, pintura. Nesse novo meio, ao invés de seus personagens medirem duas, cinco, dez vezes seu tamanho, como nos murais que ainda produz, passariam a figurar a partir do artifício da redução — por meio do qual o artista se tornou capaz de interligar conjuntos cada vez maiores de cenas em simultaneidade. Detalhe de Galo de Demanda, 2022, Acrílica sobre tela, 70 x 50 cm IV Foi em 2005, em uma aula de campo no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (MAMAM), que Bozó se deparou com as gravuras do pernambucano Gilvan Samico. Estas, passariam a ser referência direta para o seu trabalho. À sua maneira, Bacamarte atualiza a plasticidade e alguns dos preceitos do Movimento Armorial em suas telas, mas seria redutor localizar o movimento como única lente para a leitura de sua obra, sendo este o pontapé de uma grande epifania que viria a se tornar a força motriz de sua identidade artística.  Os três Guardiões e o Cavalo Mestre, Mista sobre tela, 110x90 V Há alguns anos, na estrada rumo a Taquaritinga do Norte, outra centelha: um céu sem nuvens, todo em um azul inexplicável, simultaneamente pálido e vibrante, abria-se aos olhos de Bozó prenunciando o entardecer. Esse elemento passaria a ser uma das primeiras cores a coincidir com o preto e branco de suas imagens, autorizando um sem-fim de outras, cada qual relacionada a uma lembrança ou sensação que habita a paisagem afetiva de sua memória. VI As pinturas de Bozó Bacamarte exemplificam um universo encantado, humorado e delirante proposto por ele. Suas paisagens agrestes, chaves para outro mundo, são povoadas por figuras equilibristas, contorcionistas, saltitantes. Híbridos de animais, brinquedos, gente e entidades, todos os seres parecem suspensos no ápice de seus gestos dentro das paisagens insólitas propostas pelo artista.  A casa da mestra e os bodinhos Pirilim, Mista sobre tela, 2023 VII Na sua etimologia, híbrido vem do grego hybris , significando delírio, sonho, embriaguez, alegria, excesso, equívoco. Bozó Bacamarte propõe uma iconografia prenhe de um imaginário sincrético — demarcado por signos da Jurema Sagrada —, mas também emendado com a aleatoriedade, o trocadilho e as superstições populares. É uma alegria delirante dentro de uma rigidez que ainda acena para xilogravura, que tanto lhe é afeita. É um excesso sonhado com rigor. É o oposto de um equívoco: as imagens inventadas por Bozó são o ponto de encontro de seus sentidos outrora dilatados em epifania. *Texto publicado na exposição Seis Paisagens , com curadoria de Guilherme Moraes, em cartaz em julho de 2023 na Galeria Marco Zero, no Recife.

  • AORUAURA - PRELÚDIOS DA IMAGEM #02

    aoruaura (Recife, PE, 1997), artista multimídia e performer, conversa com Guilherme Moraes, curador da Propágulo, sobre suas últimas trajetórias e produções artísticas. Como as relações de seu corpo com alteridades foram se metamorfoseando ao longo do tempo? Que comunicações são possíveis através do toque, da transposição, da contaminação e da dissolução? Quais desejos permanecem latentes em sua poética? A pesquisa de aoruaura se configura enquanto constante busca por novas maneiras de outrar-se e, assim, fazendo do contato, busca infinita e de desfecho sempre impossível, forma de aprendizado. Prelúdios da Imagem é uma série de vídeos realizada pela Propágulo com o objetivo de expandir debates e conversas com diferentes agentes da cadeia artística. A primeira temporada conta com 3 episódios, nos quais participam Mitsy Queiroz, aoruaura e Clara Moreira.

  • PARIDADE DELINEADA — ARTISTAS INDEPENDENTES EM ESPAÇOS COLETIVOS

    O que se revela sobre um ateliê coletivo em duas horas e oito minutos de conversa? E como é que se dá a criação entre pares em meio a um sistema de produção cada vez mais automatizado e individualista? Em conversa registrada na sala 107, no Edifício Criadouro, foi desenvolvida a entrevista com os artistas Eduardo Nóbrega , Xinga e Chacha Barja para compor a segunda parte da série de reportagens sobre o Escadaria - Atelier Coletivo . Neste diálogo com a Propágulo, são expressadas suas indagações enquanto artistas independentes — seja que tipo de papel um ateliê coletivo pode desempenhar na vida de seus membros, seja de qual forma o mesmo contribui para a potencialização e legitimação artística do grupo, estimulando, simultaneamente, as relações de confiança e reciprocidade no microcosmo daqueles que o integram. 5 de junho, às 16h28 Elizabeth Bandeira - Como surgiu o ateliê coletivo? Explica um pouco também sobre o processo de organização de um espaço de criação como o Escadaria — houve dificuldades? Foi harmonioso? Eduardo Nóbrega - Rayana Rayo ¹ deu início ao Escadaria em outubro de 2021 e trouxe com ela mais três pessoas, sendo uma delas Amorí ², que tá aqui até hoje. No começo, fomos com tudo e pegamos treze, catorze pessoas para trabalhar no espaço e vimos que tava um caos, de certa forma. A gente não tinha muita experiência com coletivo e resolvemos só acolher um monte de artista que tava em uma mesma situação, sempre procurando um lugar pra trabalhar. Hoje em dia está mais orgânico, as pessoas têm preferências para os seus horários. Eu, por exemplo, gosto desse que estamos, das 14h até às 17h, mas já teve diversas danças das cadeiras por aqui. Eduardo Nóbrega Elizabeth Bandeira - O que te trouxe para o Escadaria, Xinga? Xinga - Eu conseguia trabalhar sozinha, mas eram dias mais longos. O processo coletivo é bom, me faz querer ter uma rotina. Vindo pra cá, tenho meus colegas que têm o mesmo entendimento do que é ser artista e de como isso pode ser muitas vezes frustrante. Essa relação é bem saudável e nos tornamos um coletivo forte não só de trabalho, mas de viver muita coisa juntos nesses dois anos. Após concluir um processo de pintura, surge Chacha Barja ³ na mesa onde conversávamos para compartilhar brevemente uma ideia. Chacha Barja - Tava ouvindo vocês falando sobre o quão essa troca é importante, na instiga que aqui também é um lugar de construção, de trabalho e como nossos processos se intercalam. Eu não trabalhava tanto com pintura, ficava em casa e totalmente inseguro com essa técnica. Aí venho aqui e começo a trocar ideias com quem está no ateliê, cria um respaldo de pessoas ao seu redor que lhe dá segurança. Xinga - Agora que Barja chegou, vou só reforçar que quando a gente fala do Escadaria ser um ateliê de artistas do Recife, a gente fala mais do que tá acontecendo no Recife. Até porque Barja é de Belém e morou no Rio por muito tempo, Marlan é de Goiânia e morou por dois anos em São Miguel dos Milagres. É mais sobre quem tá ocupando essa cidade e tem o desejo de estar num coletivo. A gente queria poder dividir a experiência com outros artistas. Por indicação de Amorí, eu entrei no ateliê. Mas acredito que aqui cada um tem o seu processo e, de toda forma, os trabalhos conversam entre si. Tipo, Barja pinta 400 quadros de uma vez, Marlan faz dois bordados ao mesmo tempo, aí tá trabalhando com cabelo e depois com concreto. Eduardo sempre pintando, mas foca só em um projeto… Elizabeth Bandeira - Você tem essa mesma inquietude de trabalhar com vários formatos? Xinga - Eu tô fazendo uma série de dez quadros para serem expostos na ART-PE. O projeto se chama “Processo de segmentação”. Ao invés de dez projetos diferentes, eram dez telas, mas um só projeto. Xinga Eu comecei a entender melhor meu processo depois que passei esse meu ano no ateliê, por exemplo. Eu não faço rascunhos, pinto direto na tela e aprendi a fazer tudo sozinha, inclusive a pintura a óleo. Comecei a pintar como uma demanda econômica de entrar no mercado. Meu processo é outro, eu fazia fanzine com uma pegada punk. Elizabeth Bandeira - É algo bem importante vocês estarem presentes na ART-PE, né? Estão indo como um coletivo mesmo e não representados por uma galeria, certo? Eduardo Nóbrega - Poucos artistas são representados por galerias aqui, mas convertemos essa energia em sermos um espaço independente que consegue coexistir com esse mercado, que é tão valioso quanto. Estamos indo participar da ART-PE igual aos “grandões”, sabe? Xinga - É um movimento de artista para fortalecer artista, de chegar em algum lugar que a gente queria chegar, mas junto. Dá ressentimento ficar sem galeria, sentir que não tem um espaço em Recife que tenha interesse no seu trabalho, ou que não queira lhe representar, porque acha que seu trabalho não vai vender. Nosso dia a dia aqui no coletivo acaba compensando essa frustração, porque é muito massa conviver com outros artistas que têm as mesmas piras e dividem os mesmos medos. Eu acho que tem que falar, inclusive, sobre o que tá acontecendo fora das galerias, o que a galera tá se movimentando pra fazer fora disso, porque ser artista é assistemático. Não é uma forma fácil de viver e ninguém tá fazendo isso porque é fácil, como costumam falar. O Escadaria é uma resistência. Elizabeth Bandeira - O Escadaria é um ateliê coletivo daqui do Recife, mas muitos dos seus artistas atualmente migraram para fora da cidade e ocupam também capitais como Rio de Janeiro e São Paulo, especialmente por causa das propostas profissionais oferecidas. Como vocês enxergam essas oportunidades mais afluentes que circulam no Sudeste? Xinga - A gente fala muito do Sudeste, eu sei, mas é que existem artistas ganhando mais dinheiro lá do que aqui. Penso que o mercado recifense tá meio contra a gente, porque a galera ainda tá mais interessada em valorizar e comprar de artista morto, ou dos mesmos nomes grandes batidos da cidade, que é o que dá status. A burguesia daqui ainda é pouco antenada no circuito contemporâneo. Eduardo - Habla! Xinga - Não tenho vontade de morar em São Paulo. Acho que é uma cidade que engole muito a pessoa. Aqui, a gente tem os momentos de ficar de boa, vir pro ateliê e não pintar se quiser, por exemplo, ir tomar uma cerveja ali perto. Existe algo mais tranquilo onde não é tudo trabalho. Xinga e Eduardo queriam muito comprar um cigarro, e Marlan Cotrim, entrevistada para a primeira parte desta reportagem , deu a opção de passar na Praça do Sebo, ir no Chá Mate Brasília pegar um lanchinho e um maço para o grupo. Xinga pediu um suco misto sem açúcar. Xinga - Penso também em outros caminhos sobre essa questão do Sudeste. Por exemplo, Lu Ferreira ⁴ . Ele é um artista incrível do Escadaria, que tinha uma situação financeira muito difícil, mas teve uma virada de chave na carreira muito importante. Recentemente, ele foi pra uma residência de três meses em São Paulo muito foda chamada Domo.Damo ⁵ , que saiu até na Vogue EUA. Ele voltou para Recife com umas cinco encomendas, vai expor em Paris agora e não vendia há anos, sabe? Teve essa virada, e eu não digo que foi por conta do ateliê, mas ele lá na residência fala do Escadaria, saiu uma entrevista em que ele nos menciona. Eduardo Nóbrega - Existem outros caminhos, mas se esses que existem, de galeria, já são difíceis, então imagina os alternativos. O Escadaria pode abrir outras portas e iniciar outros caminhos para além desses. É engraçado porque tem gente que não sabe da existência do ateliê e aí explicamos “ah, fica na rua do Pagode do Didi”. E já rolou inclusive durante o pagode de subir com as pessoas pra cá só pra apresentar o ateliê e aí acabarem comprando um quadro. Subi só pra apresentar e desci com dois mil reais no bolso (risos) . Xinga - A gente tá muito feliz com o que tá acontecendo com o ateliê. Passamos no SIC [Sistema de Incentivo à Cultura de Recife] agora, e vamos conseguir uma grana para reformar o andar de baixo. Nosso objetivo como pessoas independentes é não precisar pagar para trabalhar. Como coletivo, nós temos uma força que sozinhos não teríamos. Elizabeth Bandeira - Qual o papel e relevância das redes sociais na vivência de vocês enquanto artistas? Mais do que artistas, vocês também se colocam nessa posição de produtores de conteúdo numa tentativa de ter esse engajamento constante no trabalho? Xinga - Acho que é se colocar. É preciso acreditar no seu trabalho, apesar de tudo. Não ter galeria pra te representar é vender seu peixe o tempo inteiro e produzir constantemente. Não acho que a forma do artista crescer seja pelo Instagram, porque se você virar artista de Instagram isso vira seu trabalho, mais do que ser artista. Pra você vender seu peixe, eu acho que é botar sua cara a tapa no meio da arte, se inscrever em edital, expor sua obra onde der, são várias outras formas para além da rede social. Elizabeth Bandeira - Tem algo muito forte e único nas obras dos dois, como uma marca estilística que reforça uma assinatura própria. Como vocês enxergam os seus próprios trabalhos? Xinga - Eu descobri muito sobre conceitualizar meu trabalho e entendê-lo aqui no Escadaria. Tem coisas que sempre estão presentes na minha tela: os ovos, o raio, as botas, o leite, as cobras, o seio, o fogo, o copo americano. Todos os símbolos que se repetem fazem parte de uma narrativa de relações de poder, sobre corpa, sobre existir de uma forma diferente, outras narrativas de inferno, de outras criaturas que são quase não humanas. Eduardo Nóbrega - Já recebo muitos comentários do tipo “teu trabalho é tua cara” ou “quando eu vejo já sei que é tu” e isso é massa, porque você olha pra trás e vê que só chegou aí por um trabalho de muita construção, pesquisa, desenvolvimento, entre erros e acertos. E nem é erro, é um processo! Hoje eu me sinto muito mais confortável com o meu trabalho por causa do Escadaria. A gente também se deixa influenciar por quem está ao nosso redor. Poxa, olhei o trabalho de Ossy ⁶ ali com a escultura e pensei “tô com vontade de desenvolver algo do tipo também”. Barja retorna à mesa e participa mais uma vez da conversa, mas agora para contar dos seus próprios processos artísticos Chacha Barja - Sou de Belém, aí morei muito tempo no Rio, fui pra São Paulo e agora tô aqui há três anos. Meu processo de pesquisa também está envolvido com essa mudança para Recife. O meu trabalho tem a ver com essa mistura de objetos, de animais, flora, como um acúmulo de coisas, sempre carregando tudo comigo. Nas minhas obras, tem a coisa do abstrato figurativo, os símbolos que sempre se repetem como os adornos da arquitetura, estampas, bordados, recortes que me atravessam dessa mistura de cidades. Eu estava trabalhando muito só e foi muito importante estar com outras pessoas, compartilhar as minhas questões e entender as inseguranças de outros artistas, essas pessoas que estão insistindo no trabalho. Elizabeth Bandeira - Em que sentido estar atuando em um ateliê de criação coletivo te transformou? Eduardo Nóbrega - Eu não saio mais daqui. Posso dizer por agora, porque existe uma comparação na minha profissão de antes do Escadaria e depois. Estando aqui, aconteceram muito mais coisas para mim, muito mais portas abertas do que antes. Xinga - Eu produzi muito desde que cheguei no ateliê, meu trabalho evoluiu. O mundo da arte tem bastante ego e grana envolvidos, então você tem que confiar mesmo no seu trabalho para se colocar como artista. Porque sempre vai ter gente pra perguntar “oxe, e tu é mesmo?” Não é fácil inserir seu trabalho no mercado, mas tem que peitar e dizer que é artista sim. Ainda não sei o quanto meu trabalho pode crescer aqui em Recife, mas sei que ele está crescendo no Escadaria e tá me colocando em espaços que eu não estaria se não fizesse parte desse coletivo. 1 - Mapeada pela revista Propágulo Nº5 , Rayana Rayo é a artista idealizadora do Escadaria. Atualmente é representada pela Galeria Marco Zero. 2 - Amorí é de Ribeirão (1995), município da Zona da Mata Sul de Pernambuco, e reside na cidade do Recife desde 2012. Formada em enfermagem, atua na área desde 2017. Em seus trabalhos toma a experimentação artística como um momento de estar consigo. Explora fluidez e movimento em suas obras, com técnicas diversas que o misturem na arte. 3 - Artista de Belém, município do Pará, mas atuante no Recife, Barja integra o Escadaria Atelier Coletivo, tendo também composto a publicação da Propágulo "Outras Gramáticas" em 2021. 4 - Lu Ferreira é artista de Olinda (PE) e integra o Escadaria Atelier Coletivo. 5 - Lu Ferreira participou do primeiro ciclo de residências da Domo Damo, uma casa de arte brutalista em São Paulo. Com um viés comunitário e é assinado pelo arquiteto brasileiro Paulo Mendes da Rocha. 6 - Ossy Nascimento, artista trans não binárie de 21 anos, natural de Olinda (PE). Desenvolve trabalhos de tatuagem, pintura, escultura e desenho desde 2020. A pele, a dissidências e a transgressão da imagem tradicional são pontos fundamentais da narrativa.

  • SEMELHANÇA DISSIDENTE NO ESCADARIA ATELIER

    Distante do festejo noturno das sextas-feiras recifenses, no qual a luz amarelada dos postes dão brilho à toada harmoniosa do pandeiro em sintonia com o cavaco no Pagode do Didi, a R. Ulhôa Cintra, no bairro de Santo Antônio, me parecia desconforme naquela tarde de segunda-feira. Não apenas pelo motivo da minha ida, que não combinava com o usual pândego da conhecida roda de samba na localidade, mas por me ver agora à trabalho, na condição de quem está prestes a iniciar uma entrevista. Nesse caso, a conversa traçaria um percurso dilatado, longe de focar em uma única pessoa, mas investigando as condutas e perspectivas de um coletivo de arte — o Escadaria Atelier Coletivo. É no Edifício Douro, um prédio multicolorido de dois andares, que o Escadaria toma forma e ocupa seu espaço na cidade. Fundado em outubro de 2021, é composto atualmente por 14 artistas residentes ¹ que atuam majoritariamente no Recife. Estanciavam vespertinos em suas respectivas áreas de trabalho no dia da entrevista Chacha Barja , Marlan Cotrim e Xinga , cada um seguindo sua própria rotina de produção. Rotina intensa e acúmulo de tarefas se tornam a realidade de artistas que, mesmo com o avanço de políticas de democratização e afirmação, e a também inegável força do setor cultural em dialogar e se impôr, ainda se encontram em uma corrida dinâmica em busca de editais e patrocínios, como se tivessem que performar como empresários da suas próprias carreiras. Em uma realidade na qual os problemas e soluções aparentam ser cada vez mais individualistas, é através da contingência daqueles que compõem uma coletividade artística que se pauta meu interesse em observar o desenvolvimento do Escadaria, um espaço que vai se revelando, à medida que desenvolvo esta série de reportagens dividida em três partes, capaz de percorrer caminhos possíveis para um fazer artístico, menos penoso e solitário. Os recortes terrestres suspensos de Marlan Nas várias linguagens visuais realizadas neste espaço-criação coletivo, entre pintura, escultura e gravura, um projeto me chamou atenção. Do lado esquerdo do ateliê, em entremeios têxteis de linhas pretas de algodão bordadas num tule, um corpo pendendo para o lado com fios escorrendo abaixo dessa costura, semelhante ao curso de um rio caudaloso, recebia ainda algumas alterações pelas mãos atentas de Marlan Cotrim. De Goiás, deslocando-se para São Miguel dos Milagres, em Alagoas, onde morou por dois anos, a artista chegou ao Escadaria Ateliê ainda no começo de 2023. Suas obras em costura, que se caracterizam como mapas topográficos, refletindo o corpo como fronteira e a pele como litoral, foram influenciadas também pela pesquisa visual que se tornou o período de residência na cidade alagoana. “A natureza impera por lá. Eu morava a poucos metros da praia e é aquela coisa de ver cobra e cavalo no meio do caminho, de não precisar usar muita roupa — só a parte de baixo e chinelo”, recorda. “Foi aí que dei atenção a essa técnica para a repetição da linha, e comecei a estudar o movimento da luz e como ela vai bater de um lado para eu conseguir dar esse efeito de onda”. Em processo de desenvolvimento para ser exibida à época na exposição Seis Paisagens², “Forró de um lado só” é mais uma das diversas investigações têxteis que trazem à tona a sua linha de pesquisa: a relação do corpo, pele e território, todos interconectados por esses contornos terrenos capazes de suspensão. Vinda dos estudos com a dança desde os seus oito anos de idade, onde a coreografia da intenção converge por fim na encantaria do movimento, Marlan transborda em si o fascínio pelo corpo. Enquanto conversamos, percebo esse interesse se materializando na maneira como ela se vestia naquela tarde, seja o brinco prateado no formato de uma face pendurado em sua orelha, o anel decorado com um olho aberto ornando seu dedo médio, e até uma uma tatuagem vermelha de uma cobra na sua mão esquerda, que me remeteu à maleabilidade do corpo daquele réptil ali representado. Fios e mais fios de cabelo costurados em um tule no canto direito de um suporte metálico na sua área de trabalho também fazem parte desse imaginário criado sobre o corpo. Iniciada no final do ano de 2022, a pesquisa com cabelo se provou tocante para Marlan, apesar de ser um material difícil de se manusear com a agulha. “Esse trabalho tem muito de eu sempre querer ter cabelo grande desde criança. Eu sou filho de pastor, então é aquela coisa de sempre ouvir ʽcorta esse cabelo’, que marca muito minha infância”, enfatiza. “Cabelo traz à memória essa resistência do tempo, ele perdurando em mim anos em desobediência”. Dou ainda algumas voltas pelo ateliê do Escadaria, meio sem jeito de subitamente me aproximar de mais alguém para uma conversa que possa tomar tempo de trabalho, mas, antes de me acomodar na rota do acanhamento, sou movida pela chegada enérgica de mais um artista. Alto, usando um notório mullet como corte de cabelo e levemente esbaforido da subida dos lances de escada com sua bike ao lado, surgia Eduardo Nóbrega , que logo se juntou à mesa onde estava Xinga. Os dois juntos, conversando em uma harmoniosa fofocagem de amigos, me fizeram pensar que ali seria um bom caminho, ou ao menos um mais fluido, para desenvolver a pauta sobre esse espaço de arte desenvolvido em coletivo. De frente para os dois, começamos a traçar uma conversa sobre o início do Escadaria Ateliê, o funcionamento interno e os perrengues de uma iniciativa desenvolvida em conjunto, além de opiniões sobre a cena artística pernambucana e o porquê de se criar entre pares. ¹ O Escadaria é formado por Amorí, Aoruaura, Chacha Barja, Cigana, Danielly Guerra, Eduardo Nóbrega, Fefa Lins, Geoneide Brandão, Joana Liberal, Lu Ferreira, Luiza Morgado, Marlan Cotrim, Mirela Rodrigues, Ossy Nascimento, Rayana Rayo e Xinga. ² Exposição em cartaz na Galeria Marco Zero, “Seis Paisagens” é um experimento curatorial que reúne diferentes exposições individuais desenvolvidas por Guilherme Moraes a partir do trabalho dos artistas Bozó Bacamarte, Bruno Faria, David Alfonso, Ianah, Rayana Rayo e a entrevistada dessa primeira parte da série de reportagens, Marlan Cotrim.

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